quinta-feira, 29 de julho de 2004

Inventar a Solidão - Paul Auster

O próprio Auster é confrontado com a morte do pai. Este acontecimento surge de forma inesperada, abrupta e leva o autor a tentar compreender os seus sentimentos (ou a ausência deles), a confrontar a figura do pai com as suas memórias.
Ao longo do livro divaga sobre a paternidade, confrontando a sua condição de filho com a de pai. Toda a obra parece ser um longo e profundo exercício de auto-análise, quase psicanalítico. Auster, como fizeram outros grandes mestres, divaga, sobretudo, sobre a solidão. Porque a vida é, essencialmente, um percurso solitário. Por mais que se viva com os outros, a vida em sociedade parece nunca deixar de ser um imenso somatório de solidões. Porque todo o homem é um mundo único, ímpar e só.
O homem é uma realidade complexa e indefinível, que nem o próprio sujeito conhece. A relação com o resto do mundo é uma teia tão complicada que só contribui para aumentar a angústia da solidão.
É um livro corajoso.
Auster encara de frente a personalidade esquiva do pai. Esmiúça e tenta desesperadamente compreender todos os motivos da sua menos boa relação com ele, fugindo ao sentimentalismo fácil mas também sem cair na frieza da objectividade crua. Procura, acima de tudo racionalizar os sentimentos, compreender a alma humana e, principalmente a sua própria alma. “Todo o livro é uma imagem da solidão” (pág. 153).
Mais do que a morte, o verdadeiro monstro é a solidão.
A morte é apenas um dos momentos em que o monstro se revela.
Excelente tradução.

O Amante de Lady Chatterley - D. H. Lawrence

Connie (Lady Chatterley) é esposa de um lord inglês, tradicionalista e austero que, logo após o casamento, é ferido na primeira guerra mundial, ficando paralisado da cintura para baixo. No entanto, mantém o casamento, com todas as suas aparências e tenta ludibriar as suas incapacidades com uma vida social intensa, onde as aparências são cuidadosamente mantidas.
Connie, no entanto, não consegue suportar aquela vida fútil e oca, apaixonando-se por um criado do marido. Aparentemente, trata-se de um romance/novela; um grande conto erótico e cor-de-rosa. No entanto, é muito mais do que isso. A sexualidade é vista como parte integrante e essencial da relação amorosa, do sentimento e da própria vida. Desmistifica-se assim aquela concepção burguesa de que o amor carnal é uma espécie de aberração do próprio amor. É encarado, pelo contrário, como algo profundamente humano.
O sexo faz parte do amor, do lado afectivo do ser humano e não do instinto ou da animalidade, como era hipocritamente entendido pelos moralistas da sociedade tradicional inglesa. Assim, é uma obra que enfrenta não só o rígido quadro de valores inglês mas todo um conceito de amor formal e puritano.
A linguagem, por vezes obscena, surge perfeitamente enquadrada no enredo e no jogo de sentimentos. Está longe de ser, portanto, um romance erótico. É um romance cheio de sentimento, cheio de ideias, embora o enredo esteja demasiado preso à intriga amorosa.

quinta-feira, 22 de julho de 2004

A Obra ao Negro - Marguerite Yourcenar


Inquietante, perturbadora, a espera da morte.
Zenão será perseguido; por ela e pela ignorância. Das duas, qual a mais tétrica, a mais terrível e impiedosa?
Zenão será condenado por ter sido sempre fiel a si próprio, à sua humanidade, ao bem universal, à verdade. Ao bem por si só!
Mas é vítima do ódio, do egoísmo, da cegueira. Do obscurantismo.
A Obra ao Negro é um testemunho histórico impressionante, de uma época (início do séc. XVI) em que se cruzam a cegueira medieval e os conflitos dos tempos modernos, com a afirmação de novos regimes e Estado, perdidos em constantes guerras e conflitos.
A visão radiosa do Renascimento é abafada pelos conflitos absurdos em torno da questão religioso (fruto da reforma protestante e contra-reforma). Zenão, vítima da sua qualidade de bastardo e de uma família obcecada pelo poder, abandona-se a uma mescla de hedonismo e solidariedade cristã, cultivando a reflexão interior, temperada com o espírito pragmático do renascimento.
Tudo isto só poderia ter um fim: as teias da Inquisição.
Impressionante o estilo. As palavras soam como música, numa linguagem fiel à época, encantadora! As descrições de Yourcenar brilham pelo realismo. O enredo não deixa escapar uma tremenda profundidade dos sentimentos. As reflexões filosóficas são constantes e profundas.
Uma obra magnífica!

quinta-feira, 8 de julho de 2004

A Metamorfose - Franz Kafka

Gregor acorda transformado num enorme e repugnante insecto e assim vive os seus últimos dias.
Há neste livro qualquer coisa de quase mágico: o enredo baseia-se num acontecimento completamente absurdo, impossível. No entanto, lê-se como se se tratasse de uma realidade, de algo perfeitamente natural e lógico. O leitor é levado a embrenhar-se no enredo, a seguir os sentimentos de Gregor, com a maior das naturalidades.
Gregor era um caixeiro viajante que sustentava a família (absolutamente parasita) e suportava um patrão insensível e mesquinho. Inicialmente, a metamorfose parece significar a libertação em relação às obrigações e alienações de Gregor: o trabalho e a família. Mas, aos poucos, ela transforma-se numa terrível prisão que condena Gregor ao mais terrível dos castigos: uma absoluta e cruel solidão.
A partir daí Gregor é vítima do desprezo por parte daqueles em função dos quais vivera: a família.
Passa a ser considerado um peso, um encargo e nem mesmo a sua morte despertará a compaixão daqueles que tanto amara.

O Castelo - Franz Kafka

K. é um homem só, à procura do misterioso Senhor Kleim.
Kleim é um homem poderoso que representa o castelo. O castelo é o poder. Kleim é a personificação, pouco nítida, propositadamente difusa, desse poder. Mas trata-se de um poder que cultiva a ignorância, primeiro e decisivo passo para a submissão dos servos.
Convém manter a cegueira. A burocracia, enorme, monstruosa, aterradora, é a carapaça, a armadura, que protege os poderosos e mantém os súbditos afastados, submissos. K. é um súbdito insatisfeito, insubmisso, que procura por todos os meios penetrar nessa carapaça. Por isso é incompreendido e mesmo desprezado pela aldeia. Ele é uma ameaça para aquele status quo em que a vida corre sem acidentes, sob o manto protector do poder. Ele é uma ameaça à suave cegueira da comunidade. Kafka é um escritor que despreza o enredo em favor da mensagem.
As descrições e os diálogos convergem sempre, nesta obra, para uma ideia central: a da crítica à natureza do poder político que cultiva a ignorância e o servilismo cego. Mas por detrás deste servilismo há uma revolta abafada que se revela à medida que a obra se aproxima do final, resultado de uma frustração colectiva perante o desprezo que o Castelo dedica ao comum dos mortais. E, intimamente, todos procuram, por meios diversos, chegar até aos senhores que tanto admiram como odeiam. Lutam e degladiam-se por isso mas de forma velada, envergonhada, silenciosa. Só K., talvez por ser estrangeiro, assume e enfrenta essa ambição. Por isso é amado e odiado. Todos os outros são reles e pequenos.
Um pormenor interessante: apenas depois de se libertarem de K., os seus ajudantes são tratados pelo nome próprio. Até aí são simples servos de K, como todos são servos dos senhores. Tudo isto é expresso num estilo algo monótono, como a vida dos servos, assente num enredo "pastoso", com um ritmo narrativo muito lento, à imagem da vida na aldeia. Assim, o aspecto lúdico da leitura é posto em risco. Por vezes, ler Kafka deixa mesmo de ser um prazer porque o objectivo não é contar uma estória. Na aldeia dos servos não há estórias. Apenas a história do senhorialismo e da solidão.

A Grande Muralha da China - Franz Kafka

A grande muralha da China foi construída por parcelas, em pequenos "pedaços", para que cada trabalhador nunca se apercebesse que não chegaria a sua vida inteira para ver a obra acabada.
Assim se explora a motivação e o entusiasmo do trabalhador anónimo.
Este é o ponto de partida para um discurso em que o poder político é visto como uma superestrutura anónimo, sem rosto, sem corpo nem identidade, que paira de forma mística, auto-sacralizada, por sobre todos os súbditos, também eles anónimos e ignorantes.
O mundo em que vivem os obreiros da muralha é um imenso absurdo, no qual a alma humana se encontra abandonada, entregue à sua solidão, vítima de um destino traçado pelos vultos ignotos da superestrutura... sem sentido, sem futuro nem passado. O presente é indiscutível, inquestionável... é o que é por vontade de alguém que tudo sabe, tudo decide... A impotência e a ignorância são os traços mais marcantes do ser humano.
Daí a solidão e o pessimismo.