terça-feira, 17 de maio de 2005

Ao Encontro de Espinosa - António Damásio

“Os sentimentos de dor ou prazer são os alicerces da mente” – é com esta frase eloquente que Damásio inicia uma obra marcada pela coragem e pelo rigor científico. Trata-se de um português infeliz e injustamente pouco reconhecido em Portugal, mesmo sendo um dos melhores neurocientistas mundiais. Os sentimentos, como a tristeza, a alegria ou o medo são características fundamentais do ser humano. A sua importância na vida sempre foi reconhecida mas nunca se colocou a hipótese de uma análise neurobiológica que permitisse avaliar a sua importância nas construções mentais. Nesta obra Damásio demonstra algo que já tinha ocorrido a Espinosa mas que só a ciência actual pode comprovar: a origem neurobiológica dos sentimentos e emoções (o cérebro é essencial para o seu desencadear) e o seu contributo decisivo para todos os comportamentos relevantes nas maiores criações do espírito humano. Trata-se de uma obra que alia de forma admirável o humanismo à ciência, a partir da ideia de que mente e corpo são inseparáveis. Os sentimentos são, antes de mais, estados particulares do corpo. São percepções que se apoiam essencialmente em mapas cerebrais do estado do corpo. Se fosse possível remover esse contributo deixaria de ser possível exprimir qualquer sentimento. Todo o processo tem início num estimulo externo competente (ligado a um estado de corpo) que promove a execução de um programa pré-existente de emoção. A partir daí são elaborados mapas neurais que desencadeiam um estado mental (alegria, tristeza, etc.) Assim, o sentimento envolve um estado de espírito mas também um “estado de corpo”. Exemplo dessa componente é o efeito do bloqueio de uma substância – a ocintocina – que impede a ligação afectiva. Quais são então as fontes do sentimento? Para que este se verifique são necessárias 4 condições ao nível somatossensitivo: a existência de um sistema nervoso, a criação de padrões mentais (imagens), a consciência (também ela entendida como resultado de um processo neurobiológico) e um cérebro capaz de criar estados corporais. Tradicionalmente, os sentimentos são apontados como um dos traços distintivos mais importantes do ser humano. Damásio confirma esta ideia mas desmistifica-a: nenhuma inteligência artificial seria capaz de “fabricar” sentimentos, apenas porque eles têm origem na organização do cérebro, a um nível muito profundo e complexo. Damásio analisa também o efeito dos sentimentos em vários níveis da vida humana, como o comportamento social, no raciocínio, no pensamento religioso, etc. A construção de todas as estruturas culturais depende de todas as características neurobiológicas que constituem o conhecimento do si. Dentro dessas características neurobiológicas incluem-se os sentimentos e as emoções. Essa construção do si, ou do connatus (expressão de Espinosa) constituem a matéria-prima para a construção de liberdade e da felicidade. Enfim, uma obra inovadora, atraente, magnífica. Única.

segunda-feira, 16 de maio de 2005

Viagem ao Fim da Noite - Louis Céline

França, durante a 1ª Guerra Mundial. Ferdinand Bardamu é um jovem francês que gasta uma vida toda entre a carnificina das trincheiras, o inferno das colónias, a solidão de Nova Iorque e, finalmente, a paz pobre de uma França saída da Guerra. Uma França triste e miserável. Por todos estes destinos errantes estendeu-se uma vida feita de miséria, infortúnio e a pior das desgraças, uma solidão involuntária, uma condenação perpétua ditada por uma personalidade abatida, esmagada. Mau soldado, colono frustrado, médico fracassado, Bardamu percorre a vida entre a desgraça universal, impotente e miserável. Ainda, e sempre, a dualidade solidão-loucura Por toda a obra perpassa a revolta pelas condições riais da existência de Ferdinand e da maior parte das personagens. Aqueles que escapam à miséria, os ricos, são vistos como abutres, personagens principais de um mundo repleto de injustiça. Trata-se, portanto, de uma visão profundamente pessimista do mundo e de uma humanidade enterrada na guerra, no colonialismo absurdo e desumano. Este pessimismo torna-se mais evidente na descrição de uma sociedade injusta e cruel. Mas todo este contexto, toda esta vida de sofrimento, não faz de Ferdinand um herói nem um mártir. As desgraças da vida fazem dele um ser frio, cruel e egoísta. A miséria degenera a alma e endurece o coração. A luta pela sobrevivência transforma a sua vida numa luta cruel e permanente contra tudo e todos. Aí reside um dos valores mais altos desta obra: a análise psicológica das consequências da miséria, lembrando Dostoiévski. Talvez ainda mais negro do que a miséria material é o vazio de sentimentos revelado pela maioria das personagens de Céline. Amor? Amizade? Solidariedade? Tudo palavras vãs, insignificantes, mesmo ausentes. Espíritos desprovidos de carácter e de sentimentos, almas vazias em corpos mirrados pela noite cerrada que é a vida. Uma das visões da humanidade mais negra, pessimista e real que alguma vez se escreveu. Brilhante.

domingo, 15 de maio de 2005

Portugal Hoje - O Medo de Existir - José Gil

Trata-se de uma visão algo pessimista do ser português, uma análise da alma portuguesa que privilegia os seus traços mais negativos. É portanto, uma visão extremamente crítica. Para Gil, o povo português é, por natureza, avesso àquilo a que chama “inscrição”, ou seja, afasta-se voluntariamente daquela perspectiva crítica e interventiva que seria essencial para a plena democracia. Atribui grande parte dessa tendência ao período salazarista que, na sua perspectiva, marcou os portugueses de forma indelével, retirando-lhes o sentido de participação democrática. Fica a sensação de um certo reducionismo. É pouco crível que, por um lado, as marcas do fascismo tenham perdurado de forma tão marcante até aos nossos dias e, por outro lado, que este fenómeno seja especificamente português. É comum ouvirmos e lermos observações deste tipo noutros países ditos civilizados. Como explicar, por exemplo, as elevadas taxas de abstenção eleitoral em países que nunca viveram em ditaduras? Um outro traço característico que aponta ao “ser” português é o pensamento “pequeno”. Os portugueses gostam de tudo o que é pequeno, recusando-se a abraçar planos a longo prazo. Falta ambição e auto-estima para que o talento e o trabalho resultem em progresso. Mais uma vez, fica a pergunta: será isto assim tão típico e exclusivo do povo português? No entanto, neste aspecto, não é difícil dar razão a José Gil. Uma outra característica da alma lusa será a inveja. O português não quer ser melhor que o outro: quer que o outro lhe seja inferior. Por isso, não valoriza as suas potencialidades, preferindo desvalorizas as dos outros. Mas não será essa uma tendência natural do ser humano? Estas características essenciais do carácter português estão a contribuir, na perspectiva do autor, para a perda de uma oportunidade única para afirmar o nosso país no contexto europeu. No entanto, é caso para perguntar: quantas oportunidades “únicas” já perdemos ao longo da História de Portugal? No meio de tudo isto, Gil é bastante crítico em ralação ao papel da Comunicação social e das estruturas políticas. Os meios de comunicação social alimentam a preguiça mental e os políticos cultivam o imobilismo. Parece-me que esta obra cai em três equívocos fundamentais: - Exagero no papel negativo do regime fascista. Não duvido dos seus efeitos negativos. No entanto, há problemas de fundo que ultrapassam em importância a responsabilidade de Salazar. - Falta de uma perspectiva histórica mais profunda: o ancestral saudosismo, o velho pessimismo saudosista, a tendência para o lucro fácil herdada dos descobrimentos e do ouro brasileiro são fenómenos históricos que marcaram indelevelmente a alma portuguesa e que Gil esquece. - Falta de profundidade. Fica a ideia de uma obra escrita para o grande público, também ela voltada para aquele objectivo que Gil tanto critica: o sucesso fácil. Sobre este tema seria certamente muito mais proveitosa a leitura de O Labirinto da Saudade: Psicanálise Mítica do Destino Português, do grande Eduardo Lourenço (1978).

sábado, 14 de maio de 2005

Bichos - Miguel Torga

Escrito em 1940, Bichos é um clássico da literatura portuguesa. Livro simples, transparente, honesto e sentido. Um grito amargo e profundo da terra que encerra os homens. Uma fusão total entre a terra e o ser humano, como se tudo emergisse de uma amálgama onde terra, bichos e homem fossem a pasta de onde nasceu a ordenação universal das coisas e dos seres. A rudeza das torgas, a aspereza das montanhas, a magreza das terras e a solidão do tempo, misturam-se num universo, cantado em poesia por um mestre que foi apenas um homem. Um homem que viveu e lutou contra um mundo ainda mais agreste, ainda mais hostil: o mundo da ditadura. Bichos é, também, o retrato fiel do viver transmontano; uma vida de suor e lágrimas, por entre escolhos e lobos, mas sempre repleta daquela alegria que só o sofrimento pode justificar: a alegria de ser, de viver em comunhão total coma natureza, em fusão permanente com os elementos. Miguel Torga fez desta obra um testemunho impar da união natural entre os Homens e os Bichos – a simbiose da vida. No meio dos dois, a terra, o traço que lhes dá vida. No trabalho, nas paixões e nas dores, os bichos compartilham com os homens as esperanças e as desgraças. Curiosa a palavra: “bichos” e não “animais”. Bichos são, talvez, os animais humanizados, irmanados com o homem na mesma luta; na vida. A linguagem, simples mas cuidada é uma das mais belas expressões da cultura popular: um vocabulário fidelíssimo à realidade transmontana. Quem conhece aquelas terras, reconhece-se em Torga. Mas a poesia latente por detrás destas estórias não é de Torga. É da terra. Por isso, este livro não é só uma criação do seu autor; é muito mais do que isso: é uma emanação da terra. E neste conceito de “terra” podemos englobar os homens e os seus irmãos “bichos” – os três elementos constituem um todo, um cosmos único onde Torga participa como mensageiro, personagem e intérprete.

sexta-feira, 13 de maio de 2005

Dona Flor e seus Dois Maridos - Jorge Amado

O maior mérito desta obra é o retrato eficaz da realidade brasileira, principalmente ao nível mental e religioso. O vocabulário utilizado é riquíssimo e reflecte precisamente essa multi-culturalidade própria do Estado da Bahia, onde se desenrola a acção. A religiosidade que mistura ao mesmo tempo o catolicismo e o candomblé, colocando as personagens do candomblé lado a lado com os santos e heróis do catolicismo (algo que, na verdade, se enquadra na religiosidade baiana, já que Salvador tem mais igrejas que qualquer outra cidade do Brasil e ainda assim é centro das religiões de origem africana). A outra característica vem a ser o facto de que Vadinho e Teodoro são metáforas para o id e o superego, respectivamente. Vadinho é rebelde, impulsivo, espontâneo e dado ao caos (no seu caso, o jogo); Teodoro é metódico e controlado ("Um lugar para cada coisa e cada coisa em seu lugar" é seu lema, pendurado na farmácia). Assim, a imagem de Flor pacificamente com os dois, totalmente feliz, invoca o ideal de equilíbrio entre os dois. Não é, a meu ver, uma obra de grande alcance literário: excelentes descrições, humor a rodos, linguagem muito atractiva e um vocabulário rico não compensam a falta de profundidade das ideias expostas. Nem seria talvez essa a intenção de Amado. Mas é precisamente a leveza, a graciosidade, que impedem essa abrangência, essa profundidade que caracterizam as obras-primas. Talvez estas características ajudem a explicar o sucesso das adaptações de Amado às telenovelas. Enfim, um livro que, mau grado a sua incrível extensão, se lê com agrado, mas do qual pouco fica no arquivo da memória.

quinta-feira, 12 de maio de 2005

O Jogador - Fiodor Dostoiévsky

“O Jogador” não é uma obra-prima; porque foi escrito por Dostoiévsky e os termos de comparação são, obviamente, os seus grandes clássicos. É quase escusado dizer que esta obra não tem o fôlego, a profundidade nem a genialidade de “Crime e Castigo” ou “Os irmãos Karamazov”. Mas para qualquer outro escritor isto seria uma obra genial. O problema é que aos génios pedimos sempre obras-primas. Mas não deixa de ser uma obra excelente, se tivermos em conta os propósitos que o levou a escrevê-la: conseguir, o mais rapidamente possível, dinheiro para pagar as suas próprias dívidas de jogo. Portanto, trata-se, em grande parte, de uma obra de cariz (ou pelo menos de inspiração) autobiográfica. Trata-se de uma análise magnífica da vida e das angústias de um jogador. A dependência envolve Alexis Ivanovitch até ao limite. Mas não se trata apenas de uma análise psicológica. O enredo envolve uma curiosa e profunda dimensão de análise social e até com implicações de crítica política. O que está em causa é muito mais do que a vida e a desgraça de Alexis. É a critica social à aristocracia feudal que persiste numa Rússia esclerosada e anacrónica. Uma nobreza de nome, empedernida, estupidificada e inútil, simbolizada pelo patrão de Ivanovitch, o General. Tratava-se do meio ideal para que, mais tarde, viesse a eclodir a Revolução Soviética. Num enredo que se desenrola nesse meio aristocrático, o vício do jogo é encarado por Dostoiévsky como um sintoma dessa falta de inteligência de que padeciam as elites nobiliárquicas. Daí a sua admiração pela Inglaterra – um país livre, onde pululavam as ideias progressistas da época e onde sobressaía uma aristocracia culta, investidora, dinâmica.

terça-feira, 10 de maio de 2005

Os Indiferentes - Alberto Morávia

Moravia escreveu esta obra com apenas 22 anos. É a sua primeira obra. Talvez por isso, o livro mistura uma grande simplicidade narrativa com aquele traço de génio tão peculiar em Morávia: um estilo directo, frontal por vezes frio, outras vezes terrivelmente apaixonado. É precisamente nesta primeira fase da sua vida literária, que encontramos o Morávia mais puro, mais profundo, antes de se ter rendido ao êxito fácil. Se excluirmos essa grande obra que é A Romana, este livro é, talvez, o mais conseguido de Morávia. É a história de Leo Merumechi, um comerciante sem escrúpulos que se envolve com a filha da amante, usando a sua relação com ambas como uma estratégia para “deitar as mãos” às propriedades da família. Indiferentes, os 4 ou 5 personagens do romance são arrastados por Leo, inconscientemente, para um processo de dominação em relação ao qual demonstram uma inactividade por vezes desesperante. Trata-se de uma reflexão sobre o medo, ou pelo menos sobre a insegurança, que leva as pessoas a deixar-se arrastar pelos outros quando estes demonstram poder. Por outro lado, há as condições materiais. Na esteira do neo-realismo, Morávia aborda a Itália do pós guerra como um meio decadente, onde o acesso à riqueza se reveste de estratégias pouco claras, onde o recurso à burla se torna banal. Este decadentismo ético e moral conduz a uma vontade de afirmação social que põe em causa os padrões morais da época. Saliente-se ainda o facto de se usarem apenas 5 personagens. Este facto, aliado à dinâmica narrativa deixa adivinhar alguma influência do teatro. Acima de tudo, é uma obra sobre a inacção. Indiferença e cobardia resultam em infelicidade. Parece-me ser esta a ideia fundamental do livro.

segunda-feira, 9 de maio de 2005

Mulheres - Charles Bukowsky

É difícil encontrar um romance de sucesso com conteúdo mais marcadamente pornográfico do que “Mulheres”. A vida de Bukowsky/Chinasky é descrita com uma crueza quase inimitável. Talvez tenha sido essa frieza e o estilo hiper-objectivo os segredos do sucesso deste escritor alcoólico, com o ele próprio se define. Um escritor alcoólico decadente que escreve para poder dormir até ao meio-dia. Para Chinasky a vida é apenas uma sucessão alternada de amor álcool e sexo. No entanto, por detrás desta crueza, desta objectividade extrema e do hedonismo que percorre todo o enredo, há uma vida angustiada e um pessimismo latente que desmascara todos os prazeres que o autor/personagem cultiva. Sempre num estilo cruel mas bem-humorado, Bukowsky deixa transparecer a angústia de uma solidão rodeada de mulheres, seres quase anónimos que preenchem as lacunas de uma vida sem sentido. Um dos aspectos mais interessantes da obra é o contraste entre o estilo bem-humorado e o fundo melancólico, a visão atormentada da vida: “não interessava o que elas faziam, nós acabávamos na solidão e na loucura” – pág. 264 Enfim, um livro divertido e cruel. Como a vida de Bukowsky.