terça-feira, 18 de julho de 2006

Os Irmãos Karamazov - Fiodor Dostoievsky

“Os irmãos Karamazov” é talvez a grande obra-prima do escritor russo. Para além de um enredo riquíssimo, esta obra revela a grande capacidade de análise psicológica dos personagens, que é característica essencial de Dostoievsky. Esta edição divide-se em 2 volumes. O primeiro, mais reflexivo, o segundo mais narrativo. Destaca-se a análise social e política da Rússia do seu tempo. Aliocha é a personagem principal do romance. No entanto, o próprio autor revela que este homem nada tem de herói, no sentido convencional do termo. Passa quase despercebido durante grande parte do enredo mas há uma chave para compreender a razão que levou Dostoievsky a colocá-lo como “herói”. É o único personagem que não julga ninguém. Aliocha “nunca desejaria julgar os homens e em caso algum seria capaz de os condenar.” É esta uma das grandes lições do mestre russo: a maioria dos homens cede sempre à tentação de julgar. Aliocha, pelo contrário, ouve, compreende e nunca faz juízos de valor sobre os outros. É assim uma espécie de guardião da sensatez perante as loucuras e paixões dos Karamazov. Um dos temas mais queridos a Dostoievsky é o papel da religião. Sendo um homem de fé, não deixa de criticar determinadas práticas da religião ortodoxa instituída. Defende uma religião essencialmente voltada para os mais desprotegidos, encarnada em Aliocha mas também no ancião Zossima. Uma visão social mas positiva da religião. É o próprio ancião que diz: “os homens foram criados para a felicidade, rejeitando assim as visões apocalípticas e a necessidade de sacrifícios para atingir o céu. O padre Ferapont, rival de Zossima, por exemplo, “vê maravilhas” graças ao intenso jejum a que se sujeita. Torna-se assim um mártir mas também um ser completamente desligado do mundo e absolutamente inútil. Um dos pontos mais fortes da obra de Dostoievsky é análise da alma russa, aqui representada pela família Karamazov. Estes, se caem no abismo “vão sempre de cabeça para baixo”. Sentem prazer na angústia, na tristeza. O homem é um mártir do destino. A vida é essencialmente sacrifício e dor. Mas é também sensualidade, vivida com excesso, com as fortes paixões da alma russa. Assim é Dmitri, que usa os outros como plataforma para a felicidade, à procura do excesso. Mas o seu espírito contraditório leva-o da sensualidade extrema à angústia: procura o prazer mas tem consciência das suas baixezas e vive-as como se fossem uma fatalidade. Mau grado o seu apurado espírito crítico, Dostoievsky nunca perde aquela enorme benevolência perante o ser humano, descobrindo sempre um fundo positivo, mesmo que se trate do detestável Fiodor ou do irascível Dmitri. Quanto à análise social, desenvolve uma perspectiva de simpatia para com os pobres realçando a sua honra e dignidade. Vítimas de injustiças e abusos, numa Rússia recém saída da servidão, os pobres são o refugo de uma estrutura económica e social caduca, onde prevalecem muitos dos privilégios do antigo regime. Mas o alvo preferido do escritor é a velha burguesia avarenta, representada por Fiodor. O pequeno Iliucha é aqui o símbolo da opressão feudal que ainda se sente na Rússia de Dostoievsky. Outra dimensão do pensamento de Dostoievsky tem a ver com a religião. Ivan, o ateu, diz: “é extraordinário que essa ideia da necessidade de Deus tenha surgido no espírito de um animal tão selvagem e perverso como é o homem. Dostoievsky não comunga do ateísmo de Ivan, mas compartilha com ele uma visão muito negativa da alma humana. Ao longo da obra coloca-se uma ênfase muito especial no sofrimento atroz de que são vítimas as crianças. E no meio de tanta dor, onde fica Deus? O ancião Zossima é o porta-voz de um pensamento religioso que Dostoievsky parece partilhar: Zossima revela uma visão optimista do mundo, um amor à humanidade que Dostoievsky parece partilhar. No entanto, essa benevolência é acompanhada de uma certa mágoa pelo destino, sempre negativo, sofredor, do ser humano. E o processo de Dmitri revela precisamente essa necessidade de expiação que envolve o ser humano. Perante a fraqueza da alma humana, a vida é uma constante expiação dos pecados e fraquezas. Daí a fatalidade do sofrimento humano. No meio de tudo isto, Aliocha aparece como o representante do ser virtuoso que, com resignação e um sorriso, enfrento o destino com benevolência. Daí o seu carácter solidário e bom. Dostoievsky compreendeu melhor do que ninguém a alma russa. Sofredora pelas condições materiais da existência mas facilmente entregue aos prazeres do mundo. Mas, ao mesmo tempo, sofredora pelo peso do remorso, pela necessidade de expiar essa mesma tendência para a devassidão. Desta forma é o próprio Dostoievsky que se confunde com a alma russa. Até o velho Fiodor, cúmulo da vida boémia, é perseguido pela consciência. Até Zossima, homem de paz, vive a expiar os pecados da juventude. A culpa está sempre presente. No fundo, todos os personagens da obra são uma mistura do bem e do mal, revelando ora uma ora outra destas facetas. Lisa é assumidamente má. O protótipo da maldade. Mas no fundo todos são maus. Catarina, que ama desesperadamente Dmitri é a mais importante testemunha de acusação e é ela quem mais contribui para a sua condenação. Mesmo insistindo na sua inocência, Dmitri aceita o castigo por necessidade de expiação.

segunda-feira, 3 de julho de 2006

Os Jardins da Luz - Amin Maalouf

No vale do Tigre, no reino dos Partos, no terceiro século depois de Cristo, vive Pattig, pai de Mani. Desprezando tudo e todos, incluindo a mulher o o filho recém-nascido, renuncia a tudo para se juntar a um grupo de eremitas, em nome de um Deus que não conhece, apenas vislumbra por intermédio de Sittai, o líder. Trata-se de uma obscura seita masculina que encara a religião como o afastamento total em relação ao mundo. Este afastamento é, no entanto, a origem e explicação da intolerância. Nesta comunidade o feminino é encarado como a origem do mal. Os bens materiais, pelo contrário, abundam: a comunidade possui os melhores campos de cultivo e acumula riqueza com o comércio dos frutos da terra. Ao mesmo tempo, o líder impõe um modo de vida regrado, onde se cultiva a frugalidade e mesmo o jejum. É a esta “religião” que Mani é “convertido” aos três anos, afastando-se da mãe. A crença libertadora aprisiona assim o ser humano. Retira-o do mundo para o enclausurar nos limites estritos da crença. O absurdo revela-se: onde está a libertação? Patting e Mani já não são escravos do mundo mas são escravizados por esse Deus que ninguém conhece. Nessa comunidade, Mani cresce rejeitado por todos, mesmo os que o “libertaram”. Aí vai preparando a sua verdadeira libertação. O seu primeiro seguidor é Malcos, um glutão com devaneios mundanos que só Mani compreende. Malcos é o pecador, aquele que recusa a “libertação”. As primeiras manifestações proféticas de Mani são-lhe sugeridas pelo seu “anjo”, cujas aparições marcam o início da sua saga. O ser sobrenatural, no entanto, mais não é que o “gémeo” de Mani, o seu outro “eu”, subjugado que tenta libertar-se. No reino dos eremitas, na comunidade dos “fatos-brancos”, Mani sobrevive graças à sua astúcia, à sua capacidade de viver um mundo interior que, esse sim, o liberta do mundo real. Na comunidade, os livros são quase proibidos, fonte de pecados e perigos para a religião instituída. Mani, pelo contrário, diverte-se com eles e pinta-os – suprema heresia! A religião de Mani começa a revelar-se a religião da alegria. Desafia os seus superiores e no dia da sua fuga usa, escandalosamente, roupas coloridas! A partir daí, Mani começa a divulgar aos desprotegidos a sua verdade. As suas ideias constituiriam aquilo a que hoje chamamos “maniqueísmo”: a doutrina da luz que triunfa sobre as trevas; do bem que em cada homem subjugará o mal. Luz e trevas, bem e mal residem no interior de cada homem. Cabe a cada um conduzir essa luta rumo ao triunfo da Luz. Mani prega, com escândalo, o fim das castas e a união de todas as religiões, de todos os homens. Mas essa viria a ser a razão da sua condenação: porque os homens não querem que lhes digam que a sua religião é verdadeira; preferem que lhes mostrem que as outras crenças estão erradas. Mani, o profeta médico que assim faz milagres humanos; o profeta pintor que pregou a beleza não defende um Deus todo-poderoso mas um Deus bom, que recusa a guerra e o poder. Mani, o homem que tentou conciliar os homens e por isso foi condenado. Por defender uma religião baseada na alegria, na cor, na musica, na arte, no saber, nos perfumes… na luz! Quando os Sassânidas e os romanos se decidem pela paz e não pela guerra, a corte do rei Sapor ficou indignada. Porque a guerra implica triunfo, glória e, principalmente tributos e saques. Sem guerra não há riqueza nem poder. Mani defendia a paz. Era preciso detê-lo.