quarta-feira, 30 de dezembro de 2009

Intervalo - Feliz 2010

Na impossibilidade de visitar os blogs de todos quanto partilham comigo esta paixão pelos livros, aqui deixo o meus sinceros votos de um 2010 cheio de alegria, com muitas e  boas leituras.
A propósito, em jeito de recomendação para o novo ano, os sete livros que me marcaram no "Ano Velho":
A Saga de um Pensador, de Augusto Cury
O Monte dos Vendavais, de E. Bronthë
Cemitério de Pianos, de José Luis Peixoto
Firmin, de Sam Savage
O Doente Inglês de M. Ondaatje
Frankenstein de M. Shelley
A Estrada, de Cormac MacCarthy

Então fiquem com uma coisinha gira da minha infância ;)
http://www.youtube.com/watch?v=dcLMH8pwusw

segunda-feira, 28 de dezembro de 2009

Cemitério de Pianos - José Luís Peixoto

Permitam-me imitar o blog http://adasartesleituras.blogspot.com e citar uma passagem absolutamente fantástica desta obra:

"na hora de pôr a mesa éramos cinco:
o meu pai, a minha mãe, as minhas irmãs
[...]
e eu. depois, a minha irmã mais velha
casou-se. depois a minha irmã mais nova
[...]
casou-se. depois, o meu pai morreu. hoje
na hora de pôr a mesa, somos cinco,
[...]
menos a minha irmã mais velha que está
na casa dela, menos a minha irmã mais
[...]
nova que está na casa dela, menos o meu
pai, menos a minha mãe viúva, cada um
[...]
deles é um lugar vazio nesta mesa onde
como sozinho, mas irão estar sempre aqui
[...]
na hora de pôr a mesa, seremos sempre cinco.
enquanto um de nós estiver vivo, seremos
sempre cinco.

Não tenho dúvidas em afirmar que José Luís Peixoto é um dos escritores contemporâneos cuja escrita mais me fascina. Com nítidas influências de Lobo Antunes e, principalmente de Faulkner, adopta a técnica de multiplos narradores que confere à escrita uma intemporalidade encantadora. O tempo sai claramente vencido. Avô, pai e filho, uma mesma vida; as mesmas angustias, que são as da gente simples, as de todos nós. "Eramos perpétuos uns nos outros", afirma o filho de Francisco.
A obra baseia-se na vida de um maratonista português que morreu, dramaticamente, ao quilómetro 29 da maratona dos Jogos Olímpicos de Estocolmo, em 1912. Carpinteiro de Profissão, Francisco Lázaro era filho e neto de carpinteiros. Nasceu no dia em que o pai morreu, como viria a suceder ao seu filho.
Memórias de vidas repetidas formam circulos concêntricos, fazendo-nos olhar a vida como um carrossel de factos que, imperiais, dominam o destino e subjugam a existência. Ao longo de toda a obra, predomina a beleza que só a tristeza pode dar às palavras. O sentir da gente simples, os prazeres e as dores de quem vive à procura da música nunca encontrada dos pianos avariados. A vida como cemitério da música. E um maratonista que corre até à exaustão em busca de um sentido (que não existe) para os círculos concêntricos.
Maria, operária fabril, passava horas lendo romances de amor no cemitério de pianos (espécie de arrecadação onde se guardavam pianos que ficaram por consertar). Maria procura nos livros o sonho que não existe. Mas procura e assim vive; entre sonhos perdidos e musica que não sai dos pianos; esperanças adiadas que não perdidas. Sonhos que são o conforto e o alimento da vida. Maria lê; e quem lê foge sempre de algo; talvez do medo, talvez das memórias, talvez de alguém. Mas vive; refugiando-se num mundo novo, mas mantendo a esperança.
Sempre a esperança do maratonista que corre como vive: à procura do sentido da vida e em fuga; fuga da culpa e do medo, os grandes inimigos da vida: ninguém vive só a sua vida; vive também a dos outros porque as suas atitudes os afectam e condicionam.
No meio de tudo isto, que interessa quem vive e em que tempo? O momento presente encerra todo o passado. É Francisco quem o diz na primeira pessoa: "todo o tempo, anos e décadas que vivi, que não vivi, que viverei e que não viverei, existem neste momento" (página 225). Passado, presente e futuro num único e poderoso agora.

domingo, 27 de dezembro de 2009

Boneca de Luxo - Truman Capote

“Boneca de Luxo” é a história de uma jovem actriz, Holly Golightly (Lulamae de seu nome verdadeiro), que foge de um passado sofrido para o luxo e a luxúria de Nova Iorque. “Em viagem” é a frase que coloca na sua caixa de correio; de facto, ela procura na vida uma eterna viagem que a leve até ao âmago da existência, por caminhos incertos mas iluminada por um objectivo: a realização pessoal, a sua afirmação como pessoa.
Boémia e mundana, Holly envolve-se numa existência povoada de vícios, com uma conduta que a sociedade carimba de devassa e imoral. No entanto, ela nunca deixa de expressar os seus valores morais. Ao longo da narrativa, é visível a superficialidade das relações humanas na grande cidade e a futilidade daqueles que a procuram em nome do corpo e da satisfação do prazer.
No entanto, Joe Bell e George Peppard, o escritor fracassado, são diferentes. Eles alimentam por Holly uma amizade profunda e verdadeira, talvez aquele amor que a cidade lhe recusa. Este amor, que nada tem de carnal, dispensa qualquer erotismo e mesmo a própria presença física. É Joe Bell quem define este amor, de forma eloquente e terrivelmente bela:
“Podemos amar uma pessoa sem ser dessa maneira. Mantemos as distâncias, é uma pessoa amiga que não deixa de nos ser estranha.”
Peppard segue os passos de Holly e caminha sempre ao seu lado, ao contrário da grande cidade que apenas a admira e utiliza nos seus desejos fúteis. No entanto, Holly permanece fiel ao seu passado; Doc, o ex-marido resgatara-a da miséria e a ele se unira com tenra idade. Para Holly, ele mantém-se o verdadeiro dono do seu afecto. Neste aspecto, as amarras do passado são intransponíveis.
“Mas, Doc, eu já não tenho catorze anos nem sou a Lulamae. (…) Mas o pior é que sou mesmo”.
Nessa quase infância, Doc libertara-a da miséria mas aprisionara-lhe os sentimentos; e Holly era como um animal selvagem que ele pretendeu enclausurar. Na grande cidade, procurou libertar-se desses grilhões, no entanto, apenas encontrou o desprezo vil da soma de egoísmos a que chamamos sociedade ou civilização.
Para Holly restou a necessidade de continuar “em viagem”.

sexta-feira, 25 de dezembro de 2009

Firmin - Sam Savage

Firmin, o rato, é o mais novo de uma ninhada de treze, filhos de uma ratazana bêbada. Fraco, por falta de teta disponível, é o renegado da vida.
Terminada a leitura, não posso deixar de admitir que, se fosse um rato como Firmin, teria devorado literalmente o livro depois de o ter “devorado” em poucas horas. Trata-se de uma fábula magnífica.
Este livro deveria ser lido atentamente por todos aqueles que não compreendem a paixão pelos livros.
Vítima de “biblobulimia”, Firmin alimenta-se de livros: ele , come e vive os livros. Vivendo numa livraria de bairro, ele observa as pessoas e vai aprendendo a viver com elas. A livraria (na primeira parte do livro) e a casa de Jerry (na segunda parte) são o seu refúgio – o mundo lá fora é horrível e decadente. Os livros e o sonho comandam a sua vida.
No entanto, Firmin, o devorador de livros, não consegue comunicar com os humanos, essa espécie incompreensível e egoísta. Jerry, o homem que queria consertar o mundo, escritor modesto e vagabundo no destino, é o único que o compreende; o seu único amigo. Jerry é pobre e desprezado. É feliz. Como o Falcão de “A Saga de um Pensador”, ele vive do outro lado do mundo; não acima nem abaixo; apenas numa linha paralela à vida dos “normais”; ele e Firmin; eles e os livros. No entanto, é nesse caminho paralelo que encontram a felicidade, bem perto da vida, não num mundo irreal ou afastado dos outros. Firmin como nós, os que amamos os livros, não vivemos noutro mundo; apenas do outro lado – aquele lado a que alguns chamam da loucura.
No entanto, Firmin, o rato, carrega consigo a solidão. Mas graças ao afecto (ou amizade, ou amor, tanto faz) por Jerry e pelos livros, essa solidão não deixou nunca de ser apenas uma palavra que apenas vagueou com ele pela vida.
Firmin teve a coragem suficiente para vencer o medo e procurar o sonho. Foi um rato renegado mas feliz.
Um livro fantástico; uma fábula inesquecível.

domingo, 20 de dezembro de 2009

O Arquipélago da Insónia - António Lobo Antunes

Memórias de uma infância feita de fantasmas vivos, vidas entrelaçadas numa insónia única, a tristeza por todo o lado, porque dela se alimenta a vida e a terra, esperanças nenhumas, sonhos ausentes, apenas memórias…
Um poço que sepulta talvez um irmão, talvez um pai, talvez uma memória ou um desejo, uma planície que os sepulta a todos, vivos na insónia, na vida igual, no trabalho igual, na dor igual.
E a morte, por todo o lado, poderosa e indiscreta, brincando com o destino da gente, ora aqui ora ali, atacando descarada depois escondida, disfarçada, tão presente que por vezes nem se sabe quem morre (o que é que isso interessa?) a morte é mais forte que os mortos, estes calados obedientes respeitosos… os mortos que morrem mas vivem, teimam porque a memória persiste. Esperança nenhuma nem Deus, só a memória, só os mortos que persistem…
Três gerações, um tempo só, indefinido, único no entanto, sem início nem fim como a tristeza.
Memórias, esquecimento, revolta, solidão, nunca futuro, nunca esperança porque o tempo não é o que será, o tempo ri, não sorri, apenas desdenha, pérfido, implacável, aborrecido mas trocista do destino da gente…
O tempo que gasta o amor que nunca existiu (que disparate amor, talvez respeito, talvez obediência como a dos bichos), amor palavra vã, ausente, sem sentido… a não ser Maria Adeleide, sim, Maria Adelaide (“com vontade de levar-te para onde ninguém nos conhecesse e pudéssemos, por assim dizer, estar em paz… não me atrevo a sugerir que felizes”)… mulher, amor, sonho algum, talvez ilusão de vida que não foi, vida apenas pensada, sonhada sem esperança. Ou talvez amor a mãe e o avô, a mãe e pai, a mãe e o padre, o avô e a avó, o avô e a cozinheira: talvez amor ou vingança ou ódio, tanto faz…
E Maria Adelaide: o amor que não conhece voz, não existiu sendo real, distante, tão distante dos pulsos das empregadas que o avô agarrava – chega aqui – amor não, qual amor, antes carne viva entre mortes e lágrimas…
E a mãe a chorar, Maria Adelaide sem voz, o pai idiota, a filha do feitor a chorar, a avó como um pires que treme na chávena… talvez tudo isto uma insónia de Deus – como pode o neto estar em paz e afinal que é ele, quem somos? Sombras de Deus?
Um pouco mais que uma mão cheia de personagens que são ilhas desertas, formando arquipélagos onde as ilhas se mudam como as estrelas, ilhas que trocam de lugar, porque tanto faz, uma no lugar da outra e a vida é igual a desgraça igual a terra igual, talvez o nome diferente, (que diferença faz?) a morte igual, a morte que é de cada um e é de todos, morremos à vez, como na dança das cadeiras, aqui as cadeiras da solidão.
E a espera. A espera que é a insónia. Talvez ânsia de paz na alma da gente (ou fantasmas? Os fantasmas têm nome?).
Uma mão cheia de fantasmas dançando ao som do silêncio ensurdecedor da tristeza.
E um livro sem beleza.
De beleza só a escrita. Nem a estória porque as vidas não têm estórias, apenas talvez espera e insónia.

segunda-feira, 14 de dezembro de 2009

O Doente Inglês - Michael Ondaatje

A solidão que é a soma de quatro almas. Quatro pessoas, quatro vidas disformes, moldadas pelo infortúnio. A solidão e um livro magoado que exala tristeza, uma obra triste como a guerra e como a soma de quatro solidões. Um doente horrivelmente queimado, uma enfermeira dedicada que sacrifica a vida por ele, um soldado indiano que a guerra fez autómato revoltado e Caravaggio, velho soldado espião e ladrão, perigoso, perdido na vida como o pintor italiano.
A segunda guerra mundial e a respectiva desgraça humana como pano de fundo: um mundo destroçado porque o mundo é feito de corpos e almas, agora dilaceradas pelo monstro que o homem inventou e a que chamam ódio. Quatro seres que já não procuram explicações nem futuro; apenas talvez a paz que um refúgio num velho mosteiro pode ainda trazer.
O Inglês esqueceu tudo, queimado por dentro e por fora, tudo para ele são sombras disformes excepto Katharine e o deserto. Nada mais faz sentido senão o deserto mapeado pelo velho Heródoto, ultimo e primeiro a compreender o mundo, e o amor. Katharine, a imagem da vida, da morte e do amor, enfim, talvez seja tudo a mesmo coisa.
Kip, uma vida de submissão do colono indiano à velha senhora, a Inglaterra, um passado de humilhação e revolta abafada disfarçado na coragem do sapador heróico, desarmando bombas que por todo o lado desfazem outras vidas.
Hanna, perdida e vítima da vida, desterrada do belo Canadá para os intestinos do mundo, a Europa, a velha Europa onde se morre apenas. E Hanna sobrevive porque ainda existe essa réstia heróica de vida – o amor. Um amor difuso, talvez pelo doente, talvez por Kip ou Caravaggio, talvez por ela própria ou pela humanidade, pouco importa.
Caravaggio, perdido no mundo, à procura de Hanna ou do que possa sobrar da vida.
Para lá de uma Itália dilacerada, um deserto africano que preenche memórias de vida. Porque “só no deserto há Deus. (…) fora dali apenas havia comércio e poder, dinheiro e guerra.”
Sentimentos fortes e paixões profundas acabam por unir os quatro personagens da obra, como forças superiores e tirânicas. O amor leva-os a viajar pela vida: Londres, Cairo, o deserto ou a India; não existe amor sem viagens por onde os espíritos vagueiam.  O amor... esse lugar estranho que fica onde as almas solitárias se completam.
Uma obra magnífica, magistral, escrita a sangue e lágrimas, onde ler é uma viagem pela melancolia e pela tristeza. Um livro belissimamente triste. Sim, porque a tristeza pode ser bela.

sábado, 5 de dezembro de 2009

A Cabana - WM. Paul Young

Uma criança raptada e brutalmente assassinada. Um pai destroçado. Uma família arrasada. À raiva junta-se a revolta perante a (in)justiça divina. Mack, o pai, abandona-se à depressão que o devora, possuído pela Grande Tristeza. Quatro anos mais tarde um bilhete na caixa de correio, assinado por Deus, convida Mack a regressar à cabana onde a filha tinha sido assassinada. Aí, desenrola-se o encontro com Deus, Jesus Cristo e o Espírito Santo.
Confrontado com Deus, Mack terá oportunidade de o confrontar com o destino cruel que este traçara para a sua filha.
No entanto, aquilo que Mack encontra é muito mais do que a oportunidade de desabafar; é a possibilidade de compreender todo o seu passado, presente e futuro. Ao fim e ao cabo, este livro conduz-nos à tentativa de compreensão de qualquer acontecimento, por mais trágico que seja, à luz de algo muito mais global do que o facto em si. A vida não tem passado, presente nem futuro; o tempo, tal como o encaramos, esconde uma realidade global que tudo explica. Dessa forma, mesmo as manifestações mais tenebrosas do mal, são enquadradas numa construção humana da qual Deus parece ter-se demitido; no entanto, as manifestações do mal não são mais do que o preço a pagar pela liberdade dos homens.
O sucesso desta obra parece demonstrar a debilidade espiritual de um mundo de onde se ausentaram muitos dos princípios éticos que o cristianismo, como muitas outras religiões, sempre advogaram. Curioso o facto de esta mensagem espiritual coincidir no essencial com as ideias de vários outros escritores que pouco ou nada têm a ver com o cristianismo: Weiss, Cury, Trevisan, Tolle, Sharma, etc.
Em suma, trata-se de uma obra capaz de despertar o sentido de humanismo e de transcendência que parece escassear neste mundo dominado pelo capitalismo frio e egoísta, pela falta de leveza de espírito que nos conduz a uma constante luta pelo poder. No entanto, chega-se ao final da obra com algum sentimento de decepção pelo carácter apologético, pela ausência de inovação e pela repetição de uma mensagem que, mesmo assim, nunca será fastidioso enfatizar.

terça-feira, 1 de dezembro de 2009

Frankenstein - Mary Shelley

A história é contada através de quatro cartas dirigidas por R. Walton a sua irmã. Walton encontra-se numa expedição nos mares gelados no Norte. É um corajoso aventureiro mas, acima de tudo, uma pessoa de carácter profundamente humano que encontra em Victor Frankenstein, o viajante perdido no gelo, um amigo que com ele partilhará a sua incrível história.
É nas cartas à irmã que Walton revela toda a desventura daquele cientista, desesperado por reencontrar nos gelos do Norte o monstro que criara.
Desde cedo, Victor é atraído pelo conhecimento do corpo humano, encantado pelas maravilhas da ciência moderna, própria da época em que o livro é escrito (inícios do séc. XIX). Na verdade, é uma época de triunfo da ciência e da tecnologia; a era da tecnologia do vapor, fruto da Revolução Industrial. Ao nível da química e das ciências naturais, vivia-se uma fase de intenso progresso, na sequência da afirmação do método experimental, com as descobertas de Newton e aos estudos de Lavoisier que deram a conhecer, por exemplo, a composição do ar e da água.
É essa nova atmosfera que leva Frankenstein às suas incríveis experiências, conseguindo dar vida a um ser feito de pedaços de cadáveres que recolhia nos cemitérios. Victor demonstra uma certa “personalidade dupla”, levando-o a assumir um “lado negro”, que o impele para as suas terríveis descobertas, em confronto com o seu lado humano, sentimental, profundamente ligado à família e à sua grande paixão, Elisabeth. Neste sentido, a ciência é vista como uma espécie de fatalidade, como se Victor fosse vítima da própria ciência e não o seu construtor. Quando Victor descobre o segredo da geração da vida, esse saber é visto como perigoso, como se constituísse uma espécie de condenação. Victor será assim a vítima da sua ciência.
Curioso o facto de o título original da obra ser “Frankenstein or the Modern Prometeus”. Prometeu teve uma condenação perpétua porque roubou o fogo aos Deuses para dar superioridade aos homens. Foi vítima da sua inteligência. Como Frankenstein.
Mas a grande surpresa desta obra reside na visão que a autora nos dá do “mostro”. Antes de ser corrompido pela “humanidade”, ele revela um carácter puro e bom. Nos seus primeiros contactos com o mundo, aprende em primeiro lugar a sentir a beleza e o amor. Os primeiros seres humanos que encontra depressa se transformam na sua “família” e chega a ser enternecedor o amor que começa a sentir por eles. Nesta fase, a descrição do “monstro” parece corresponder à imagem do “bom selvagem”, divulgada em França por Jean-Jacques Rousseau, cerca de 50 anos antes da publicação desta obra. Curiosamente, Rousseau era natural de Genebra, tal como Frankenstein (coincidência apenas? Não me parece). Tal como acontece na teoria de Rousseau, o “monstro” nasce naturalmente bom. É a sociedade que o corrompe.
De facto, a ausência de sentimentos negativos só se mantém até ele iniciar o convívio com os seres humanos. Aí, ele aprende a odiar; descobre a maldade. Da mesma forma que Victor encontrara a infelicidade ao adquirir conhecimento cientifico, a sua criatura torna-se infeliz quando adquire o conhecimento do ser humano. Quando este contacto se inicia, o próprio aspecto físico, aos olhos dos humanos, é suficiente para desvalorizar por completo toda a sua bondade natural. Nessa altura como hoje, na ficção como na realidade: a imagem prevalece sobre o ser e o sentir. Ser “feio” é desde logo infinitamente mais significativo do que ser “bom”.
Os homens ensinaram o monstro a praticar o mal; a partir daqui entra-se na espiral do ódio, alimentado por um verdadeiro monstro, o preconceito: socialmente, a criatura é uma aberração. Também vítima do preconceito, Victor revela-se insensível, incapaz de compreender o sofrimento da criatura; responde ao ódio com o ódio e a violência acentua-se. A vontade de vingança de Victor acentua a mesma vontade no monstro. O ódio destrói. Afinal de contas, o ódio é uma característica humana. Desgraçadamente humana.
Em conclusão: a criatura é um monstro odioso e admirável; selvagem mas humano; que odeia e que ama. Como os homens. Como todos nós. No entanto, é na pureza dos sentimentos humanos que se encontra a paz e a felicidade; no coração mais que na inteligência.



segunda-feira, 23 de novembro de 2009

O Tigre Branco - Aravind Adiga

O Tigre Branco é um dos livros mais corajosos e inteligentes da última década. O autor, indiano radicado nos EUA, descreve o percurso de vida de Balram, um jovem indiano, pobre nascido entre os mais pobres. No entanto, Balram desde cedo revela a inteligência e a ambição que o levarão a galgar os degraus do sucesso até se tornar um empresário de sucesso na “nova” Índia.
O livro está escrito em forma de cartas ao primeiro-ministro chinês, reforçando desde o início o paralelismo entre as duas grandes potências emergentes no novo quadro geo-político e económico mundial.
Inacreditável é a palavra que mais vezes me assomou à consciência enquanto lia esta obra. De facto, a Índia que Adiga nos descreve é absolutamente dominada pela injustiça social e pelo inacreditável reinado da corrupção. Uma sociedade apodrecida pela ganância que vai acentuando as diferenças entre aquilo que o autor considera serem as “duas Índias”: a da Escuridão, onde os pobre se digladiam por uma sobrevivência precária e a da Luz, onde a ganância domina a vida de uma classe capitalista sem escrúpulos.
As antigas tradições daquela velha Índia, daquele mundo encantador de Deuses que convivem em paz e harmonia com os homens, parecem ter desaparecido. No espírito do autor, todo esse misticismo não passa de folclore para mostrar aos ocidentais.
Para subir na vida, para chegar à Luz, Balram teve de penetrar no mundo da corrupção desenfreada, da hipocrisia e da desonestidade mais descarada, até ao ponto de assassinar o patrão, de quem tinha uma imagem bastante positiva. Assim, Balram é apresentado como um personagem moralmente contraditório, que valoriza a humanidade do ser e os valores éticos que o ligam por exemplo, à família, em descarada contradição com uma capacidade de adaptação ao mundo da corrupção e da desonestidade, indispensável para atingir a “Luz”.
Assim, a Índia é-nos apresentada como uma potência emergente mas cujo poder económico assenta na desigualdade e na exploração. Tudo se passa como se o velho sistema de castas tivesse encaixado no espírito capitalista que acentua esse fenómeno de desigualdade e de segregação.
O estilo bem humorado, profundamente sarcástico de Adiga acentua o carácter chocante da obra. O autor não hesita em utilizar uma linguagem crua, cáustica e por vezes violenta para caracterizar uma sociedade onde todos os valores morais parecem irremediavelmente perdidos. A própria família é já dominada por este espírito de luta, pela ambição material, mesmo ao nível dos mais desfavorecidos.
Em suma, um livro chocante, descarado, que nos leva a reflectir sobre a natureza do progresso. As potências emergentes, como a China e a Índia, baseiam o seu crescimento na desigualdade. Perturba-nos este caminho. Até que ponto será este o caminho a seguir por esta humanidade? Até que ponto o progresso poderá ainda ser algo que beneficie, de facto, a humanidade?

domingo, 15 de novembro de 2009

O Monte dos Vendavais - Emily Brontë


Ler o Monte dos Vendavais é uma aventura. É uma viagem alucinante ao interior do espírito humano e aos mecanismos que desencadeiam as paixões. No mundo da literatura, poucas vezes o confronto entre o amor e a vida foi tão dramaticamente abordado, como nesta obra magnifica de Emily Brontë.
O aspecto mais sublime desta obra tem a ver com a forma como os personagens principais representam tipos de comportamento complexos e, no fundo, profundamente humanos. É como se eles nos representassem a todos nós, nos aspectos mais profundos da nossa personalidade. À primeira vista, dos três personagens principais, dois deles (Catherine e Heathcliff) são figuras pouco adequadas àquilo que nós apelidaríamos de “pessoas normais”. Os seus comportamentos são, na maior parte dos casos, estranhos ao homem do século XXI. No entanto, o encanto desta obra está precisamente em mostrar que aqueles comportamentos também são nossos, também nos representam.
Edgar Linton é, aparentemente, o mais “normal”, aquele que mais se aproxima do arquétipo do homem comum. E isto porquê? Porque Edgar representa o “socialmente correcto” que é, ao fim e ao cabo, o factor que mais condiciona a nossa vida. Todos nós, no quotidiano, adoptamos atitudes que se destinam, em primeiro lugar, a cumprir deveres e regras mais ou menos impostas pela sociedade, pela tradição, pelas leis e por aquilo a que chamamos “moral”. Uma moral tantas vezes atrofiante e castradora, representada de forma sublime pelo criado Joseph.
No extremo oposto a Edgar, encontramos Heathcliff, um homem dominado pelas paixões. No entanto, essas paixões não se limitam ao amor por Catherine; um amor inexplicável à luz da razão, mas também a um conjunto de atitudes e traços de personalidade determinados pelas emoções e sentimentos. Heathcliff é amor mas também ódio e medo. Heathcliff representa tudo quanto há de instintivo na alma humana. E aí, no mais profundo da alma, amor e ódio misturam-se invariavelmente, em permanente luta. E o medo é a face visível dessa luta. Heathcliff inspira medo como expira paixão.
Catherine é a personagem intermédia, perdida entre o racional, o conveniente, de Edgar e a tempestade de paixões, o mundo do irracional, que é Heathcliff.
No final, qual destes lados triunfa? Isso é o que menos importa; o ser humano estará sempre condicionado por estes dois pesos que avassalam a alma. Poderemos algum dia encontrar um compromisso entre eles? Provavelmente não. E a felicidade a que Catherine aspirava, tal como qualquer ser humano, poderá encontrar-se em algum destes lados? Ou será a vida um longo caminho, uma longa procura rumo a esse compromisso?
Em jeito de conclusão, poderei afirmar que a resposta a estas perguntas será o grande desafio da vida de qualquer ser humano. E. Bronthë teve o enorme mérito de representar as nossas maiores angústias e medos. De nos mostrar os verdadeiros fantasmas da nossa alma. Cabe a cada um de nós descobrir que a literatura não é mais que um espelho da vida. Por mais incrível que nos pareça.



Intervalo na Leitura - Fado do Encontro - Tim e Mariza








Ao longe,
Distante,
Fica o mar no horizonte
É nele, por certo
Onde a minha alma se esconde...



quinta-feira, 5 de novembro de 2009

A Saga de um Pensador - Augusto Cury

Um grande livro não precisa necessariamente de ter um estilo virtuoso, ou um enredo fantástico, muito menos exige uma linguagem simbólica e enigmática. Um grande livro tem que, isso sim, mexer com a alma. E, nesse sentido, este é um grande livro. Enorme.
É impossível ficar indiferente a esta viagem ao coração. A Saga de um Pensador é a nossa vida em livro. Augusto Cury revela-se o verdadeiro mestre na arte de nos apontar o dedo acusador: somos nós, os “normais” que não vemos a verdade, porque vivemos afundados nessa “normalidade” de autómatos. No entanto, só é cego aquele que não quer ver. E Marco Polo, o explorador da vida e protagonista principal do livro (jovem aluno de medicina e depois psiquiatra) mostra-nos como é possível ser feliz abraçando o mundo, em vez de o olharmos como um meio onde pululam inimigos e problemas.
E é entre os miseráveis, na rua, que Marco Polo aprende a arte de ser feliz. Rindo e amando a vida. É ele que nos ensina que as coisas mais importantes da vida são simples e fáceis de adquirir. Que os outros são, também eles, nossos companheiros nessa procura; que a natureza é o mundo de Deus; que a essência do ser está em nós e não no mundo exterior.
Ao longo do seu percurso académico e profissional, Marco Polo enfrenta os maiores e mais temíveis desafios: a ignorância, o egoísmo e a ambição. Mas há uma solução para todos os males: a liberdade. Em grande parte, este livro é um hino à liberdade que podemos encontrar dentro de nós. Como em quase tudo na vida, a solução está na alma.
Essa liberdade é talvez o factor mais importante na construção da felicidade; as correntes que nos prendem ao mundo exprimem-se em três formas de escravatura da alma: a sobrevalorização da opinião dos outros, a criação de necessidades e a recusa do tempo presente, ao sobrevalorizar o passado e ao ter medo do futuro. Ninguém consegue ser livre sem se libertar destas três amarras. No fundo, os grandes problemas da existência derivam das suas maiores qualidades: pensamos, mas fazemo-lo em demasia. Esta sobrevalorização do intelecto leva-nos muitas vezes a desvalorizar o que é simples e belo.  Extrapolamos, inventamos fantasmas e adiamos decisões em nome do nosso intelecto. Em nome do pensamento esquecemos essa arma que todos possuímos: a imaginação. Dentro de nós é possível construir mundos de paz, de harmonia, de felicidade. Só a leveza das emoções, a abertura da alma à beleza simples do mundo nos pode dar essa luz que a mente intelectualizada se esforça por apagar.
Em conclusão: este livro não é uma obra-prima da literatura mundial; no entanto é um dos livros mais fascinantes que alguma vez se escreveram; nele encontramos caminhos que, de tão óbvios, nunca conseguimos vislumbrar. Trata-se de um verdadeiro manual de felicidade individual e colectiva. Que mais pode um livro dar a um ser humano?
Este livro no Viajar Pela Leitura

terça-feira, 20 de outubro de 2009

As Pessoas Felizes - Agustina Bessa-Luís

O pano de fundo de “As pessoas felizes” é o Porto burguês dos últimos tempos do Estado Novo. A cidade e a região são dominadas socialmente por uma burguesia de carácter forte, tradicionalista, aparentemente aberta mas profundamente marcada pelas regras de um conservadorismo que situa a meio caminho entre a base rural e um formalismo urbano anacrónico. No entanto, o formalismo é imprescindível à manutenção de um cosmos social rígido e que se procura perpetuar. Os tempos são de crise, as dificuldades económicas e as convulsões sociais parecem abalar esta sociedade petrificada mas esta sobrevive num estertor de desespero e resistência.
As convenções enleiam as pessoas numa teia dentro da qual elas procuram ser felizes. Mas trata-se de uma felicidade bem delimitada por essa mesma teia: tudo se passa como se o mundo burguês fosse um microcosmos onde nenhuma emanação do espírito pode penetrar. A vida interior é algo que a personagem principal (Nel) traz para esse mundo mas é precisamente essa vida interior que não lhe permite fazer parte desse conjunto de pessoas felizes. O mundo da aparência tem de triunfar, mesmo que isso signifique a castração do ser humano enquanto ser pensante e individual. Por isso, Nel é a ameaça à estabilidade da família; ela representa os tempos perigosos que se aproximam (o enredo desemboca nos inícios dos anos 70) e não apenas a mulher desprezada na sua qualidade de ser desprovido de senso. A exclusão de Nel é a exclusão do individualismo, do espírito crítico, do pensamento autónomo. Ser mulher é, neste enquadramento mental, por si só, um factor de exclusão a não ser que ela se enquadre num esquema hierárquico onde assuma um papel de sevícia ou de idolatria: a mulher só pode ser respeitada se inspirar admiração ou viver na submissão. Qualquer existência individual que escape a esta concepção hierárquica da sociedade, é rejeitada.
Num estilo profundo, trabalhado e comprometido, Agustina transpõe para este livro o sentimento de uma mulher “do Norte”, tão encantada quanto desiludida perante a beleza de uma região e a altivez de uma sociedade desprovida daquela dimensão humana que permitiria a sobrevivência do ser individual e autónomo.
É esta a impressão que me fica deste livro: um intenso lamento perante uma elite social de coração empedernido, acomodada a valores anacrónicos e defensora de paradigmas mais velhos que o vinho que fez a prosperidade da região.
Não é um livro fácil porque a alma humana nada tem de fácil; e porque não é uma estória que Agustina nos conta; é uma reflexão sentida e complexa de uma escritora genial. Nobel, diria eu.

domingo, 11 de outubro de 2009

Miguel Sousa Tavares - Equador

Romance histórico, devaneio de jornalista, novela ou romance clássico? Pouco interessa a definição. Equador é uma obra onde o estilo jornalístico do autor vem ao de cima, nas suas descrições pormenorizadas, quase cinematográficas e às vezes fastidiosas. De facto, o estilo pouco inovador de M. Sousa Tavares é contrabalançado, nesta obra, pela facilidade de expressão, por uma linguagem desprovida de reflexões ou considerações filosóficas, o que torna a leitura fácil e fluida.
Não se trata, portanto, de uma obra de grande fôlego literário nem era isso que pretendia o autor. Fica a ideia que a intenção primordial era prender o leitor, no bom estilo do romance realista. A emoção que nos leva a ler “só mais uma página” antes de devolver o livro à mesa de cabeceira está presente até ao final, com um desfecho  que tem tanto de inesperado como de inquietante. Mas durante as mais de quinhentas páginas deste volume o leitor é permanentemente presenteado com acontecimentos inesperados e intrigas bem próprias de um ambiente onde Luís Bernardo procura sobreviver num autêntico campo de batalha onde se confrontavam valores e interesses.
Luís Bernardo foi nomeado (pelo rei D. Carlos) Governador de S. Tomé e Príncipe numa altura em que os ingleses reclamavam a existência de trabalho escravo, aparentemente com o objectivo de combater a concorrência portuguesa em África. Cabia ao novo governador defender os interesses nacionais perante os ingleses e, ao mesmo tempo, zelar para que o trabalho escravo fosse de facto banido. Nessa missão ele confrontar-se-á com o poder dos roceiros, os donos das fazendas, com mentalidade tradicional. Mas o maior desafio será a forma como o nosso herói se irá debater com princípios tão contraditórios como o seu humanismo natural na defesa da pessoa humana perante o interesse económico que justificava a escravatura. Por outro lado, era preciso cumprir a aliança com Inglaterra, manter relações amistosas com o nosso grande concorrente e, ao mesmo tempo, a necessidade de fazer prevalecer o interesse da Nação e, dessa forma, a necessidade de defender os colonizadores portugueses.
A montante da história de Luís Bernardo, das intrigas políticas, dos assuntos de saias e de um romance que fica mais ou menos entre o cor de rosa e o dramalhão, há um pano de fundo histórico que o autor estudou meticulosamente e do qual nos dá conta no bom estilo de manual de História do ensino secundário; a importância que as colónias ainda tinham no início do século XX, a problemática aliança inglesa e o agonizar do regime monárquico estão retratados neste livro de uma forma clara e fiel.
No final fica a sensação de termos percorrido 520 páginas sem grandes ideias originais, sem grandes contributos para a inovação literária, mas um pouco mais conscientes dos grandes dilemas da história contemporânea portuguesa, para além de um entretenimento que o livro, de facto, fornece.
Alguém afirmou que as grandes ideias não devem vir dos escritores mas sim dos filósofos. De facto, M. Sousa Tavares nada tem de filósofo, mas muito tem de contador de histórias e de analista político. De facto, os grandes problemas da política portuguesa prevalecem em toda a história contemporânea de Portugal: o caciquismo, a subjugação dos interesses nacionais a interesses particulares, a submissão aos ingleses e, latu sensu, a interesses externos, o compadrio são fenómenos que percorrem sem grandes dificuldades os últimos cem anos da História de Portugal. Estes problemas, coisas que colocam a política na fronteira da diplomacia com a hipocrisia, chocam de frente com o idealismo de Luís Bernardo, um homem bom e justo que, inevitavelmente, vai chocar de frente com essa hipocrisia. David, o inglês, pelo contrário, é o homem político por natureza: adaptável, maleável, capaz de suportar traições e contradições em nome da conveniência política.
Pena é que, por vezes (e isto apenas como nota de rodapé) deixe o seu estilo jornalístico cair em imprecisões de linguagem, sendo o exemplo mais flagrante o uso irritante do verbo “realizar” como sinónimo de “compreender”. Trata-se de um anglicanismo que talvez seja mais um testemunho da submissão lusa às coisas de Sua Majestade Britânica.

terça-feira, 6 de outubro de 2009

Luis Novais - Quando o Sol se põe em Machu Pichu

Na sua primeira incursão pela escrita, Luís Novais conduz-nos ao ambiente místico do Império Inca, fornecendo-nos um testemunho da actualidade dessa cultura dita perdida. Vários personagens, provenientes de diversas partes do mundo, completam nas montanhas do Peru rotas de vidas que se cruzam num ponto de intersecção: um convite misterioso para uma viagem a Machu Pichu.
Trata-se de homens e mulheres comuns que um ser maior terá escolhido para a viagem. Todos excepto um (Jonathan) sofrem de um dos piores, talvez o pior mal que pode atingir um ser humano: a ausência do sonho. É à procura desse sonho que eles vão. De Paris, Berlim, Jerusalém, Nova Iorque, eles trazem sonhos perdidos e o desencanto perante um mundo onde parece ter desaparecido o sentido de humanidade. A Europa não interessa aos europeus; Israel não é a Terra Prometida porque o sonho não se cumpriu; Nova Iorque já não é a terra dos sonhos realizados… Todos procuram no terreno sagrado dos Incas o sonho que as suas vidas matara.
Este livro envolve também uma mensagem de descrença perante o mundo que construímos; um mundo que continua a ser colonialista, quinhentos anos depois de Colombo, substituindo os Pizarros de outrora por paradigmas mais ou menos interesseiros, como o frio e implacável capitalismo liberal. O indivíduo submerge sob a pressão desses paradigmas, muitas vezes escondidos sob a capa de um patriotismo cultivado pelo poder político e económico. Só o individualismo, o culto do ser humano enquanto ser livre e autónomo poderá dar à humanidade a capacidade de sonhar, indispensável para uma vida feliz e equilibrada.
Por outro lado, persiste a predisposição dos povos para a desunião; talvez a América do Sul seja o último reduto de um povo com a consciência da sua unidade cultural. E talvez o espírito de Machu Pichu continue a pairar sobre a humanidade como o ultimo reduto da redenção.
Luís Novais, no seu já inconfundível estilo de frases curtas (que António Pedro Vasconcelos – com evidente e infeliz exagero - diz representar a “geração SMS”) presenteia-nos com uma obra onde o misticismo Inca se mescla com uma visão ao mesmo tempo cosmopolita e individualista da humanidade; aparentemente estamos perante uma contradição filosófica. No entanto, a impressão que me fica do pensamento do autor é esta: a humanidade só poderá ser livre cultivando o ser individual e a soma dessas liberdades resultará num todo em que deixarão de fazer sentido quaisquer formas de dominação ou exploração do homem pelo homem. Só o sonho poderá manter viva a chama deste desejo de libertação; e esse sonho persiste nas misteriosas montanhas do Peru. Inca, de facto, está vivo.

sábado, 12 de setembro de 2009

Cormac McCarthy - A Estrada



Um homem. Um rapaz, seu filho. Tudo o resto é quase nada: um mundo devastado por um apocalipse de fogo que o leitor imagina ter sido uma catástrofe nuclear. Árvores secas, terra estéril, rios de lama e um mar onde homem e rapaz sonham encontrar a salvação.
Um livro surpreendente. Logo à partida, destaca-se a felicidade com que se concebeu uma capa (na edição portuguesa Relógio d’Água) que, incrivelmente simples, encerra grande parte do espírito da obra: um fundo negro de morte, ou de tristeza, tanto faz, e o título da obra escrito num vermelho desmaiado que pode ser de sangue ou de dor… está dado o mote para uma obra perturbadora, que desperta no leitor sentimentos de revolta, de inquietação, mas também de uma tremenda empatia perante aqueles personagens que percorrem a estrada e que nos parecem levar pela mão. Eles caminham sozinhos, mas nós permanecemos sempre com eles!
Os personagens não têm nome; apenas “o rapaz”, “o homem”, “o velho”, “a mulher”, “os maus” e “os bons”. Pouco interessam os nomes, num mundo onde as identidades se perderam, onde não há datas nem calendário, cidades nem aldeias, pássaros nem peixes. Só eles, a estrada, os cadáveres e a cinza, para além de uma esperança que nunca morre, um sonho que resiste e, acima de tudo, um amor que comanda a pequena réstia de vida que, no entanto, é um mundo inteiro. Ninguém sobrevive sem amor.
A devastação e a ausência quase total de vida leva-nos a pensar naquilo que estamos hoje a fazer com o nosso planeta. Em poucos segundos, algures antes do nascimento do rapaz, um clarão de fogo atravessou a terra; e tudo se perdeu, excepto os “sobreviventes” que vagueiam pela terra, como náufragos perdidos numa imensa ilha árida e despovoada.
Carregando um velho carrinho de supermercado onde transportam todo o seu mundo, rapaz e homem vagueiam nas estradas daquilo que nós imaginamos ser a América, à procura do mar, acreditando que este pode ainda ser a fonte de vida ancestral, como o foi há milhões de anos. De tempos a tempos surgem outros sobreviventes que, vagueando na mais extrema miséria, são vistos como “os maus”, que se alimentam de carne humana, matando para comer e autores dos mais pérfidos actos de crueldade.
No meio de tanta infelicidade e terror, entre o rapaz e o homem sobrevive sempre o amor filial e paternal, só ele capaz de explicar a sobrevivência e, até, a felicidade. Eis a questão: é possível ser feliz no meio da maior catástrofe: uma lata de feijões fora de prazo pode ser o suficiente para que um sorriso de criança faça renascer a felicidade. Talvez seja esta a lição maior que todos precisemos aprender.
Cormac McCarthy, aos 73 anos, afirma-se finalmente como um grande nome da literatura norte-americana ao vencer, com este livro, o prestigiado prémio Pulitzer. Esta obra é, sem dúvida uma das mais marcantes do novo século.

sexta-feira, 11 de setembro de 2009

Valter Hugo Mãe - O Remorso de Baltazar Serapião

José Saramago não andava longe da verdade quando afirmou que este livro era um verdadeiro “tsunami” na literatura portuguesa. A força, a violência da escrita, a desordem emocional que provoca no leitor, o desmascarar de fantasmas que persistem na memória colectiva portuguesa, são vagas de fundo que se escondem por detrás das 174 páginas deste livrinho e que emergem constantemente, para assaltar violentamente a mente de quem lê.
Primeira marca d’água sensível ao leitor: o estilo; a ausência de maiúsculas não é arrebique de escritor novato à procura de distinção; é o sinal de que a escrita corre como um rio e a leitura quer-se simples e corrediça. O falar do povo é o estilo do escritor; inovador mas com o sentido profundo da alma de gente.
O enredo decorre na Idade Média, tempo de El-rei D. Dinis, um tempo de pobreza e profundas desigualdades sociais; o herói da estória é Baltazar Serapião, da família Sarga, alcunha que advém do nome da vaca da família, ela própria figura central do enredo. Os Sarga confundem-se com a vaca e o povo encara-os como filhos da vaca, ou da terra, ou do pecado, ou da loucura. Serapião é um homem revoltado, filho da sociedade senhorial do seu tempo, em que os Senhores dispõem da vida da gente.
No meio de tudo há a mulher e o amor; mas a mulher, que desempenha o sagrado papel de servir o Homem que serve o Senhor, recebe no corpo e na alma a consequência lógica da cadeia hierárquica da violência: o Senhor é dono da vida do servo, como a mulher é propriedade do homem – a serva universal.
A violência sobre a mulher, é a ponta do iceberg de uma sociedade dominada pela força mas também por uma revoltante miséria espiritual, onde a ignorância é transversal aos vários estratos sociais: todos cultivam a superstição de forma quase religiosa. É a força bruta da ignorância a comandar a vidas das gentes e a mulher, ente sagrado e amado, é o alvo final de toda a violência de que o mundo é feito.
Um livro pungente, revoltante, enérgico, bruto. Real. Os medos e a estupidez que nós, homens do século XXI apontamos acusadores à Idade Média, prevalecem na nossa mente e o escritor faz-nos sentir isso; este não é um livro sobre a Idade Média nem um romance histórico; é um livro sobre os nossos monstros e fantasmas. É um livro real, medonho, onde matar uma mulher é castigo quase divino, onde uma vaca pode ser sagrada e amada, uma vaca que é mais que gente! A revolta exprime-se na violência e a hierarquia estende-se para a mulher.
É também um livro sobre o absurdo e o irracional do amor; do amor até à morte…

quarta-feira, 2 de setembro de 2009

Mia Couto - Um Rio Chamado Tempo, Uma Casa Chamada Terra



Mais um livro em que Mia Couto transporta para a criação literária as marcas do período colonial e pós-colonial; a dor de um povo, ou de uma Terra (que é povo e tudo o mais), na escrita de um poeta sem rimas mas que faz escorrer o sangue da sua gente no papel da ficção. Terra e rio, gente, suor e lágrimas, termos de uma equação insolúvel, equivalente à vida. Escrita poética, escrita sofrida, mas também corajosa e sentida. Palavras que afluem do peito, frases inventadas pelo coração.

Ler este livro é fácil e divertido. A estória contada diverte e embala. Mas Mia Couto permite-nos algo mais que ler: a sentir o livro; deixarmo-nos conduzir pela alma de uma gente que um dia foi escrava para depois se escravizar; e sentimos que a dor da gente é uma dor que não tem fim; como a vida de Mariano, o defunto.

O estudante universitário Mariano volta à sua terra natal para o funeral do avô. Enquanto aguarda pela cerimónia é testemunha de estranhas visitas na forma de pessoas e de cartas que lhe chegam do outro lado do mundo. São revelações de um universo dominado por uma espiritualidade que ele vai reaprendendo. À medida que se apercebe desse universo frágil e ameaçado, ele redescobre uma outra história para a sua própria vida e para a da sua terra.

Luar do Chão (terra inventada mas real do Moçambique pós colonial mas onde a esperança morria) é terra de gente pobre. Terra sofrida, desfeita pelas ambições e promessas de quem, afinal, não trouxe o paraíso à terra.

No entanto, no meio da desilusão, dos sonhos assassinados, Mariano reencontra-se consigo mesmo em Luar do Chão; é a terra que traz consigo a identidade, o ser profundo de Mariano; é no meio do fantástico, do surreal que faz parte da vida, do misticismo de um povo que há-de sempre acreditar numa qualquer redenção, é aí mesmo que Mariano redescobre a esperança.

Um dos aspectos mais maravilhosos da escrita de Mia Couto é a síntese perfeita entre a leveza de um estilo que encanta pela simplicidade, fruto de um povo simples e puro e a profundidade filosófica da sua narrativa. Este livro é um convite à reflexão sobre muitos dos temas que continuam a conturbar o nosso mundo: a avidez dos lucros, a voragem capitalista sobre, afinal de contas, a terra-mãe, mas também o sentido da vida e da morte: o avô Mariano é o morto que se recusa a morrer; o defunto de obra inacabada que contempla o céu no seu leito de morte num quarto sem tecto. À sua volta deambulam personagens que encerram os grandes dilemas e sofrimentos da vida.

A terra, a mãe, contempla-os e determina os seus destinos.

Um livro apaixonante que é também um convite à transcendência; o homem não é só miséria ou lucro, sofrimento ou alegria; é um mundo inteiro de crenças, medos e paixões. A Terra não é só o lugar de onde cresce a alimento; a Terra é a imperatriz da vida; daí que ela se recuse a receber o corpo do avô Mariano enquanto a paz e a verdade não regressa à casa. A casa, por seu turno, é o centro da vida; as mulheres que a habitam são as mensageiras da paz e da felicidade de todos.

domingo, 23 de agosto de 2009

O Tambor - Gunter Grass

“O Tambor” é a história de Óscar, um jovem que a vida fez anão, disforme e desprezado, na cidade de Danzig, a moderna Gdansk. Óscar, internado num hospital psiquiátrico após a segunda guerra mundial narra a história da sua vida, desde o nascimento no meio rural da Alemanha dos anos 20, até que a loucura da humanidade se confunda com a dele próprio e o encerre com os grilhões da normalidade. Nesse cárcere final Óscar revive o passado como se fosse o tambor a contar-lhe a história; na verdade, ele confunde-se com o próprio tambor que o acompanhou durante toda a existência. Ao longo da obra, Grass coloca várias vezes o tambor a falar na primeira pessoa, confundindo-se ele próprio com o personagem principal.
À medida que Óscar vai tocando tambor, vai-se apercebendo que ele se torna um instrumento de poder, como a flauta de Hemlin. É ele que faz o povo chorar, como a cebola que se descasca. É a ele que o povo segue, como os ratos seguem o flautista. É a sátira ao poder mas, principalmente à fraqueza de espírito de um povo despersonalizado, anónimo e apático. É a crítica à indiferença do cidadão comum perante as atrocidades da guerra. Óscar simboliza essa massa anónima que “toca tambor” enquanto a matança prossegue.
Óscar é um personagem frio, completamente imune a qualquer sentimento, exptuando o amor pela mãe. Pormenor marcante da narrativa: Óscar entrega o pai adoptivo, bem como o pai verdadeiro às tropas nazis sem qualquer piedade. A sua aparente loucura não é mais do que uma estratégia de sobrevivência.
Num mundo marcado por uma guerra em que se matam freiras que se confundem com franceses, e que perante as atrocidades de Hitler um povo toca tambor, o surreal emerge da superfície real das coisas. E a vida sobrevive, o sentido das coisas passa apenas por aquilo que está “à mão”, nada mais interessa; nem a Pátria, nem a família nem qualquer Deus. Tudo vive ao ritmo do tambor.
Ao longo de toda a obra, Grass deixa bem vincada a sua mordacidade, a sua escrita quase cínica, em busca do grotesco que emerge da vida. Toda a realidade se confunde com o grotesco e o fantástico, sem nunca sair da mais banal sobrevivência quotidiana. Por todo o lado, o sofrimento, mas um sofrimento normal, habitual, como se a vida não tivesse sentido sem esse sofrer. Nem que seja preciso descascar cebolas para chorar ou maltratar uma mulher para a amar. O sofrimento caminha sempre lado a lado com a vida e a felicidade.

terça-feira, 18 de agosto de 2009

Jesusalém - Mia Couto

Jesusalém é a história de Mwanito, o menino. Um menino em África, terra de guerra, solidão e encanto. Jesusalém é também a terra sem tempo inventada por Silvestre Vitalício, pai de Mwanito que, fugido da cidade, procura a libertação numa antiga propriedade colonial. Junto com eles segue Ntunzi, o irmão mais velho e Zacarias, o antigo soldado que combateu do lado errado de todas as guerras.
Vitalício foge da cidade mas também da vida, da culpa e do tempo. Jesusalém seria a terra sem tempo nem dono, onde a solidão resgataria todas as mágoas. Ali, onde não há mulheres nem mundo, tudo é baptizado de novo e só Vitalício decide o que ali acontece. De preferência, procura que nada aconteça porque só o vazio faria sentido. O vazio e o silêncio.
O papel central do romance é assumido por Mwanito, o “afinador de silêncios”. Sobre isto, afirmou Mia Couto na apresentação da obra: “Em África, os silêncios são parte da conversa. O silêncio é uma outra maneira da palavra viver e há coisas que não podem ser ditas de outra maneira”. Mwanito personifica a paz, a única paz que Vitalício encontra e, ao mesmo tempo, a sua única ligação ao passado.
No entanto, não é possível fugir ao tempo nem ao mundo; é nesse aspecto que Jesusalém é uma história desencantada, onde a escrita poética e belíssima de Mia Couto encontra terreno fértil. A literatura ao lado do sofrimento, sem o qual não consegue viver.

segunda-feira, 6 de julho de 2009

Homem na Escuridão - Paul Auster

Trata-se de uma das obras mais interventivas de Auster. O pano de fundo é fornecido pela América de Bush e dos atentados de 2001. O brilhante escritor norte-americano reeinventa aqui uma América onde as torres não caíram e onde as eleições de 2008 conduziram a uma nova guerra da secessão.
August Brill, 72 anos, critico literário reformado, angustiado e deprimido, conta histórias a si mesmo; histórias que são de Auster e de uma América doente. E as histórias, aos poucos, impõe-se a Brill e não podem deixar de ser contadas. Nesse momento, a ficção e a realidade misturam-se como na vida. A vontade de Brill deixa de ter importância. Os facto tornam-se incontornáveis e a história tem medo de ser contada porque ganhou a vida que lhe é dada pela História.
Homem na Escuridão é um livro sobre a vida dominada pela angústia mas também sobre a alegria das pequenas coisas que, se nós deixarmos, nos podem salvar da tragédia humana eminente.
É mais um livro em que Auster une, com mestria, autor, história e leitor, numa cadeia indestrutível. Esta união leva-nos mais longe do que a óbvia identificação entre o leitor e a história, conduz-nos a um universo onde predomina a mente do escritor, como se este nos guiasse através das suas próprias ideias.
Como em todos os seus livros, prevalece o humanismo do escritor, que encara as suas personagens do ponto de vista das suas emoções e sentimentos, mais do que o seus pensamentos e opiniões. O final do livro, ao contrário do que é habitual em Auster não prima pelo elemento surpresa mas pela profunda humanidade.
Nesta obra descobrimos um Auster mais interventivo, mas também cada vez mais voltado para as emoções, para os sentimentos, para a angustia da existência.

sexta-feira, 19 de junho de 2009

Os Parricidas - Luís Novais

Um homem sem nome, uma identidade sem rosto, uma vida de onde se escoa a razão. Ele vê o Diabo que, no fundo, emana da sua própria incerteza, da ignorância que é o seu refúgio e inicia a espiral de busca dele próprio.
Ele somos nós, homens à procura da identidade, o mesmo é dizer, de ser feliz. A loucura que se aponta ao homem sem nome vai-se revelando, ao longo do livro, a normalidade da vida, desta vida que só conhecemos pela rama. Dentro de nós, dentro do homem sem nome, cresce a raiva do não saber quem somos, muito menos para onde vamos. Cresce a revolta e o Diabo emerge, nascido e criado no mais profundo da nossa alma. E a morte do pai, culpado de ser e de o fazer nascer, redimirá o mal de viver.
Normalidade ou loucura, Diabo ou consciência, destino ou vontade, tudo afinal se mistura num caos chamado vida. “Os Parricidas” não é, definitivamente, um livro qualquer; é a síntese da loucura normal, o repensar que todos procuramos de uma vida dominada pelo absurdo. As trajectórias que seguimos, aparentemente dominadas pelos cordelinhos de um fantoche que somos mas que julgamos manobrar, perdem um dia o sentido. É nessa altura que questionamos, repensamos e (tantas vezes!) encontramos o absurdo; ou o Diabo. Ou nós mesmos.
Podia dizer aqui uma série de banalidades sobre as influências de Dostoievski ou os traços indeléveis das leituras que o Novais terá feito de Kafka, mas por detrás disto tudo talvez esteja algo de muito mais profundo e, ao mesmo tempo, terrivelmente banal: a luta incessante pela busca da identidade. E as derrotas que todos nós sofremos nessa luta desigual. Por isso, não é Dostoievski que vejo por detrás dos Parricidas, embora “O Idiota” esteja por ali; nem o Joseph K de Kafka, embora ele espreite pelas frestas do livro; é Auster que eu leio por detrás das palavras do Novais.
Seja como for; com interpretações atrevidas como estas ou sem elas, ler Novais é algo que já não sentia há muito tempo: há ideias para lá dos clássicos.