sábado, 12 de setembro de 2009

Cormac McCarthy - A Estrada



Um homem. Um rapaz, seu filho. Tudo o resto é quase nada: um mundo devastado por um apocalipse de fogo que o leitor imagina ter sido uma catástrofe nuclear. Árvores secas, terra estéril, rios de lama e um mar onde homem e rapaz sonham encontrar a salvação.
Um livro surpreendente. Logo à partida, destaca-se a felicidade com que se concebeu uma capa (na edição portuguesa Relógio d’Água) que, incrivelmente simples, encerra grande parte do espírito da obra: um fundo negro de morte, ou de tristeza, tanto faz, e o título da obra escrito num vermelho desmaiado que pode ser de sangue ou de dor… está dado o mote para uma obra perturbadora, que desperta no leitor sentimentos de revolta, de inquietação, mas também de uma tremenda empatia perante aqueles personagens que percorrem a estrada e que nos parecem levar pela mão. Eles caminham sozinhos, mas nós permanecemos sempre com eles!
Os personagens não têm nome; apenas “o rapaz”, “o homem”, “o velho”, “a mulher”, “os maus” e “os bons”. Pouco interessam os nomes, num mundo onde as identidades se perderam, onde não há datas nem calendário, cidades nem aldeias, pássaros nem peixes. Só eles, a estrada, os cadáveres e a cinza, para além de uma esperança que nunca morre, um sonho que resiste e, acima de tudo, um amor que comanda a pequena réstia de vida que, no entanto, é um mundo inteiro. Ninguém sobrevive sem amor.
A devastação e a ausência quase total de vida leva-nos a pensar naquilo que estamos hoje a fazer com o nosso planeta. Em poucos segundos, algures antes do nascimento do rapaz, um clarão de fogo atravessou a terra; e tudo se perdeu, excepto os “sobreviventes” que vagueiam pela terra, como náufragos perdidos numa imensa ilha árida e despovoada.
Carregando um velho carrinho de supermercado onde transportam todo o seu mundo, rapaz e homem vagueiam nas estradas daquilo que nós imaginamos ser a América, à procura do mar, acreditando que este pode ainda ser a fonte de vida ancestral, como o foi há milhões de anos. De tempos a tempos surgem outros sobreviventes que, vagueando na mais extrema miséria, são vistos como “os maus”, que se alimentam de carne humana, matando para comer e autores dos mais pérfidos actos de crueldade.
No meio de tanta infelicidade e terror, entre o rapaz e o homem sobrevive sempre o amor filial e paternal, só ele capaz de explicar a sobrevivência e, até, a felicidade. Eis a questão: é possível ser feliz no meio da maior catástrofe: uma lata de feijões fora de prazo pode ser o suficiente para que um sorriso de criança faça renascer a felicidade. Talvez seja esta a lição maior que todos precisemos aprender.
Cormac McCarthy, aos 73 anos, afirma-se finalmente como um grande nome da literatura norte-americana ao vencer, com este livro, o prestigiado prémio Pulitzer. Esta obra é, sem dúvida uma das mais marcantes do novo século.

sexta-feira, 11 de setembro de 2009

Valter Hugo Mãe - O Remorso de Baltazar Serapião

José Saramago não andava longe da verdade quando afirmou que este livro era um verdadeiro “tsunami” na literatura portuguesa. A força, a violência da escrita, a desordem emocional que provoca no leitor, o desmascarar de fantasmas que persistem na memória colectiva portuguesa, são vagas de fundo que se escondem por detrás das 174 páginas deste livrinho e que emergem constantemente, para assaltar violentamente a mente de quem lê.
Primeira marca d’água sensível ao leitor: o estilo; a ausência de maiúsculas não é arrebique de escritor novato à procura de distinção; é o sinal de que a escrita corre como um rio e a leitura quer-se simples e corrediça. O falar do povo é o estilo do escritor; inovador mas com o sentido profundo da alma de gente.
O enredo decorre na Idade Média, tempo de El-rei D. Dinis, um tempo de pobreza e profundas desigualdades sociais; o herói da estória é Baltazar Serapião, da família Sarga, alcunha que advém do nome da vaca da família, ela própria figura central do enredo. Os Sarga confundem-se com a vaca e o povo encara-os como filhos da vaca, ou da terra, ou do pecado, ou da loucura. Serapião é um homem revoltado, filho da sociedade senhorial do seu tempo, em que os Senhores dispõem da vida da gente.
No meio de tudo há a mulher e o amor; mas a mulher, que desempenha o sagrado papel de servir o Homem que serve o Senhor, recebe no corpo e na alma a consequência lógica da cadeia hierárquica da violência: o Senhor é dono da vida do servo, como a mulher é propriedade do homem – a serva universal.
A violência sobre a mulher, é a ponta do iceberg de uma sociedade dominada pela força mas também por uma revoltante miséria espiritual, onde a ignorância é transversal aos vários estratos sociais: todos cultivam a superstição de forma quase religiosa. É a força bruta da ignorância a comandar a vidas das gentes e a mulher, ente sagrado e amado, é o alvo final de toda a violência de que o mundo é feito.
Um livro pungente, revoltante, enérgico, bruto. Real. Os medos e a estupidez que nós, homens do século XXI apontamos acusadores à Idade Média, prevalecem na nossa mente e o escritor faz-nos sentir isso; este não é um livro sobre a Idade Média nem um romance histórico; é um livro sobre os nossos monstros e fantasmas. É um livro real, medonho, onde matar uma mulher é castigo quase divino, onde uma vaca pode ser sagrada e amada, uma vaca que é mais que gente! A revolta exprime-se na violência e a hierarquia estende-se para a mulher.
É também um livro sobre o absurdo e o irracional do amor; do amor até à morte…

quarta-feira, 2 de setembro de 2009

Mia Couto - Um Rio Chamado Tempo, Uma Casa Chamada Terra



Mais um livro em que Mia Couto transporta para a criação literária as marcas do período colonial e pós-colonial; a dor de um povo, ou de uma Terra (que é povo e tudo o mais), na escrita de um poeta sem rimas mas que faz escorrer o sangue da sua gente no papel da ficção. Terra e rio, gente, suor e lágrimas, termos de uma equação insolúvel, equivalente à vida. Escrita poética, escrita sofrida, mas também corajosa e sentida. Palavras que afluem do peito, frases inventadas pelo coração.

Ler este livro é fácil e divertido. A estória contada diverte e embala. Mas Mia Couto permite-nos algo mais que ler: a sentir o livro; deixarmo-nos conduzir pela alma de uma gente que um dia foi escrava para depois se escravizar; e sentimos que a dor da gente é uma dor que não tem fim; como a vida de Mariano, o defunto.

O estudante universitário Mariano volta à sua terra natal para o funeral do avô. Enquanto aguarda pela cerimónia é testemunha de estranhas visitas na forma de pessoas e de cartas que lhe chegam do outro lado do mundo. São revelações de um universo dominado por uma espiritualidade que ele vai reaprendendo. À medida que se apercebe desse universo frágil e ameaçado, ele redescobre uma outra história para a sua própria vida e para a da sua terra.

Luar do Chão (terra inventada mas real do Moçambique pós colonial mas onde a esperança morria) é terra de gente pobre. Terra sofrida, desfeita pelas ambições e promessas de quem, afinal, não trouxe o paraíso à terra.

No entanto, no meio da desilusão, dos sonhos assassinados, Mariano reencontra-se consigo mesmo em Luar do Chão; é a terra que traz consigo a identidade, o ser profundo de Mariano; é no meio do fantástico, do surreal que faz parte da vida, do misticismo de um povo que há-de sempre acreditar numa qualquer redenção, é aí mesmo que Mariano redescobre a esperança.

Um dos aspectos mais maravilhosos da escrita de Mia Couto é a síntese perfeita entre a leveza de um estilo que encanta pela simplicidade, fruto de um povo simples e puro e a profundidade filosófica da sua narrativa. Este livro é um convite à reflexão sobre muitos dos temas que continuam a conturbar o nosso mundo: a avidez dos lucros, a voragem capitalista sobre, afinal de contas, a terra-mãe, mas também o sentido da vida e da morte: o avô Mariano é o morto que se recusa a morrer; o defunto de obra inacabada que contempla o céu no seu leito de morte num quarto sem tecto. À sua volta deambulam personagens que encerram os grandes dilemas e sofrimentos da vida.

A terra, a mãe, contempla-os e determina os seus destinos.

Um livro apaixonante que é também um convite à transcendência; o homem não é só miséria ou lucro, sofrimento ou alegria; é um mundo inteiro de crenças, medos e paixões. A Terra não é só o lugar de onde cresce a alimento; a Terra é a imperatriz da vida; daí que ela se recuse a receber o corpo do avô Mariano enquanto a paz e a verdade não regressa à casa. A casa, por seu turno, é o centro da vida; as mulheres que a habitam são as mensageiras da paz e da felicidade de todos.