sexta-feira, 30 de abril de 2010

O Outono em Pequim - Boris Vian

“O Outono em Pequim” é um livro absurdo, sobre o absurdo ou talvez não, porque a própria vida é absurda ou talvez não. Não se passa em Pequim nem no Outono; o título poderia ser Primavera na Transilvânia ou um tempo qualquer num sítio qualquer. É um livro seriamente cómico, a fazer lembrar o humor non-sense dos Monty Python (que é posterior, note-se) ou a arte surrealista. Na verdade, talvez este livro seja uma espécie de pintura surrealista sobre a condição humana.
Amadis Dudu começa por perder vários autocarros 975. Cheios e vazios, vai perdendo autocarros sucessivos. É desprezado. Assume assim a importância zero do ser humano perante os autocarros e os motoristas de autocarro que são, como todos sabemos, os homens mais importantes do mundo. Todos nós dependemos dos motoristas dos 975 do mundo e Dudu não escapava à regra. Por isso perdia autocarros como quem perde a vida.
Cládio Leão é preso por transportar um revólver para o patrão. Na cadeia não o deixaram suicidar-se e em vez disso é condenado a assistir às brincadeiras divertidas dos guardas. Mais tarde o abade Joãozinho conduzi-lo-á à felicidade fazendo-o eremita.
Todos os personagens estão a caminho da Exopotâmia, sem saberem muito bem porquê. Mas não estaremos todos à procura de uma Exopotâmia qualquer? Sei lá...
Eis que os nossos heróis acabam por chegar todos à Exopotâmia, a “terra onde não há ar”, uma terra de areia onde há passado: aí se constrói um caminho de ferro no deserto, que não serve para nada e onde o arqueólogo Atanágoras procede a enormes, meticulosas e inúteis escavações. Arqueólogo tão competente que se alimenta de carne de múmia.
Por ter, finalmente, apanhado o 975 certo, Amadis Dudu torna-se Director Técnico do importantíssimo projecto do caminho de ferro inútil no deserto da Exopotâmia. Torna-se assim um chefe prepotente e insensível. Competentíssimo, portanto. O Conselho de Administração, como bom governo que é, nada decide e nada faz, a não ser louvar o Ditador Dudu. Além disso, a sua tarefa mais importante é, nas reuniões fazer uma distribuição correcta dos cartões eróticos.
Dudu é um ditador. Mas como poderíamos viver nós sem ditadores proclamados génios? E os que trabalham arduamente, fazendo importantes buracos inúteis no deserto, têm de ganhar o menos possível para que Dudu ganhe o máximo. Poderemos continuar a dizer que este livro não tem lógica?
Na Exopotâmia há também um médico: Manjamanga que constrói aparelhos voadores e que mata mais doentes do que os que sobrevivem. Há um abade, Joãozinho, que reza rosários tão depressa que faz arder as contas. No entanto, vai redimindo os criminosos. Não é para isso que serve a religião? Entretanto, sonha com seios femininos.
Não se trata de um livro de fácil leitura. Mas esta linguagem profundamente simbólica não deixa de despertar um encanto avassalador. Tudo é simbólico, absurdo e real. Humano. Profundamente humano.
Se este livro fosse uma canção seria mais ou menos assim:

segunda-feira, 26 de abril de 2010

Os Livros que Devoraram o Meu Pai - Afonso Cruz

Como se pode ver aqui, Afonso Cruz é um homem de múltiplos talentos e em boa hora meteu mão à escrita.
Este é um livrinho divertido e sério. Vivaldo Bonfim vivia lendo. Um dia caiu dentro de uma edição de “A Ilha do Dr. Moreau” e nunca mais de lá saiu.
Após este desaparecimento misterioso, os seus livros ficam encerrados no sótão de sua casa até que o seu filho, aos 12, adquira o direito a lá entrar. Nessa altura, o jovem narrador não tarda a seguir as aventuras do pai, procurando-o nesse livro mas sendo também levado a transitar entre várias outras obras, à procura de Vivaldo. Assim vai convivendo com autores e personagens, numa viagem alucinante às profundezas da literatura, deambulando entre clássicos e livros avulsos.
“Não há nada mais estúpido do que amar incondicionalmente, como fazem os cães e aqueles dois que Shakespeare imortalizou” – disse Mr Hyde. Esta e outras frases revelam uma fina ironia e sentido de humor. Personagens célebres transitam de uns livros para outros, por entre exemplos de surrealismo puro, como por exemplo aquele personagem que se faz cão porque o ser humano é o mais desumano dos animais. Na ilha que Wells inventou, os cães recusam ser humanizados. Decididamente, mais vale ser cão…
O nosso herói, filho de Bonfim (note-se o a-propósito do apelido do homem que caiu dentro de um livro) parece vaguear pelas partes brancas dos livros – entre as linhas, entre as palavras e à margem do texto, que é como quem diz, à margem do enredo – como que passeando ao lado do mundo maravilhoso dos romances e da poesia. E talvez seja mesmo nas partes brancas dos livros que se encontra a verdadeira sabedoria: “O mundo não precisa de Lao Tsés. Precisa, isso sim, de Lao Tsés calados.” (página 67).
Raskolnikov (de Crime e Castigo), o rei do remorso, é o principal suspeito do desaparecimento de Bonfim e é perseguido na Rússia (dentro do livro) por Bonfim (filho). Após o final de Crime e Castigo Raskolnikov continua a matar na esperança de que a morte banalizada se torne menos torturante. Afinal, as histórias dos livros continuam sempre. Porque são feitas por homens; homens criados por outros homens e que assim ganham vida. Dentro dos livros há outros mundos; que são reais a partir do momento que foram criados pelo escritor. Porque “Um homem é feito de História” – a ficção é vida como a vida também é ficção; é feita de memórias e todas as memórias são subjectivas. Tudo pode ser moldado, construído ou destruído; renascido ou criado… como num romance! Esta é a lição maior dos livros para a vida.
Enfim, um livro absolutamente original, cheio de criatividade e humor. Um tema que poderia ter sido mais bem explorado. Ficámos com a sensação de se ter perdido uma oportunidade de desenvolver um tema tão original e fértil.
Mesmo assim, sem dúvida, um livro que merece ser lido e relido.

sábado, 24 de abril de 2010

quarta-feira, 21 de abril de 2010

No País das Últimas Coisas - Paul Auster

Numa cidade desconhecida, Anna procura desesperadamente o seu irmão William. Mas não se trata de uma cidade qualquer. Numa paisagem a fazer lembrar “A Estrada”, de Cormac McCarthy, deparamos com um cenário catastrófico, onde um qualquer desastre arruinou por completo os seus habitantes. O livro dá a entender que não se tratou de um desastre natural nem de uma guerra mas de destruição humana.
Esta visão apocalíptica põe em discussão toda a condição humana, todo o processo que pode conduzir a um esvaziamento total do eu. Não é só a cidade que se esvazia na miséria; são os homens. São as almas. Almas que trocam a felicidade, o sentimento, mesmo o prazer, por um vazio onde até a alimentação do corpo se torna dispensável. Este esvaziamento radical do ser é o que mais profundamente choca o leitor.
Numa primeira parte do romance, Auster massacra autenticamente o leitor com algumas dezenas de páginas que percorremos com total angústia perante a miséria física e moral a que um ser humano pode ser sujeito. São páginas que não chegam a despertar revolta, tão irreal é o cenário descrito; como se a nossa alma e o nosso cérebro fossem incapazes de encarar tal realidade como algo minimamente plausível. Mas à medida que o enredo avança os sentimentos emergem. Com eles, a revolta, a preocupação, o medo até.
As pessoas que perderam tudo tendem a adoptar comportamentos infantis, sonhando, imaginando, acreditando… no entanto, os objectivos são diferentes: as crianças imaginam para criar um mundo fantástico; as pessoas desesperadas usam a imaginação para esconderem a realidade de si próprias; a imaginação como fuga, como negação do real.
Na cidade do desespero a morte é um objectivo. A morte torna-se uma arte, uma forma de expressão. As pessoas criam formas de morrer. A morte torna-se espectáculo e até uma manifestação de heroísmo. Mas, para a maioria, a morte não deixa de ser banal – morre-se em qualquer lado e por qualquer motivo. Os cadáveres invadiram a cidade e tornaram-se um meio de sobrevivência: sem eles não poderia ser obtido o metano, única fonte de energia disponível.
Para a maioria, a vida limita-se a uma sobrevivência no limiar da morte – um mundo onde a esperança é totalmente ausente e onde os “risonhos” (os optimistas) são uma minoria e considerados estúpidos e absurdos.
No meio de um contexto macabro de fome, miséria e desesperança (como diria Mia Couto) a morte é uma bênção, um benefício. Curiosa a associação da morte de um personagem ao prazer sexual extremo: o prazer como prelúdio da morte. No entanto, quando se trata da morte do “eu”, por mais que seja desejada, há sempre um último passo que se torna quase impossível de dar. A vida auto-preserva-se, mesmo no limiar extremo.
Um dos pormenores mais geniais desta obra é a caracterização de um personagem que sobrevive graças ao facto de estar a escrever um livro. É o livro que o mantém vivo. A sua miséria é tão grande que só se alimenta de dois em dois dias. No entanto sobrevive porque há um livro para acabar. E só uma coisa haveria de superar o livro: o amor! Mesmo nos limites do sofrimento, Anna encontra aí o período mais feliz de toda a sua vida, mesmo incluindo os anos em que viveu na riqueza.
Bóris, o comerciante, é um homem encantador. Na verdade, ele é um mentiroso. No entanto, conta histórias fantásticas que todos fingem ser verdadeiras e quando a mentira encanta passa a chamar-se fantasia; tem o dom de nos libertar da crueldade e do sofrimento. Talvez seja por isso que todos nós temos necessidade de mentir, mesmo a nós próprios. Talvez seja também essa mentira feita fantasia que nós procuramos nos livros - a construção de mundo fictício que nos encante. É neste aspecto que Auster, neste romance, foge à regra. Este livro não nos encanta. Este livro choca-nos brutalmente com uma realidade extrema e, ao mesmo tempo, tão humana.

domingo, 18 de abril de 2010

A Alma Trocada - Rosa Lobato de Faria

Ler Rosa Lobato Faria é como receber na face uma brisa fresca em pleno Verão. É um presente que damos à alma quando o cansaço ou a tristeza nos invadem. Que leveza, que aragem suave, que fluidez de palavras!
Este livro não é uma obra-prima, não é um clássico, não é um tratado de coisa nenhuma. É apenas isso: uma aragem talvez do Monte Alentejano onde decorre parte da acção. É um livro que se lê sem o mais pequeno esforço, sem necessidade de reflectir em mensagens complicadas e profundas.
A enorme experiência de Rosa Lobato Faria a escrever guiões para televisão talvez tenha contribuído para esta facilidade em contar histórias sem maçar, sem cansar.
Trata-se da história de Teo, um jovem professor de francês que se define como “o gajo mais chorão de toda a comunidade gay”. Desde logo é evidente a luta pela afirmação do direito à diferença mas o livro vai bem mais longe: os problemas de relacionamento entre Teo e Hugo ou a busca desesperada da sua identidade não são problemas específicos de um homossexual; são problemas humanos. Tão só.
Teo tem a alma trocada. Aparente e provisoriamente, só. Ao longo do enredo, Teo vai descobrindo que a sua alma é una e única. Ele não é o professor de francês que tem uma vida paralela como homossexual. Ele é um e único. Sem esta descoberta nunca seria feliz, nunca encontraria a sua identidade. Teo é, como todos os seres humanos, um homem que sofre porque ama embora não saiba o que é o amor. É um homem indeciso como qualquer outro, forçado pela vida a fazer opções e a sofrer as devidas consequências.
Como qualquer um de nós, Teo procura a liberdade como condição essencial à vida. Procura oxálida, plátano, miligrã, palavras que inventa porque elas são liberdade, são criação, são aventura. Porque não é preciso saber o significado das palavras; é preciso procurá-las. Basta procurá-las…
Um livro cheio de sensibilidade, de leveza de espírito, essa leveza sem a qual ninguém consegue libertar-se das amarras da opressão, sejam elas do nosso próprio espírito ou da sociedade que nos inserimos. Um livro que deveria ser de leitura obrigatória para determinadas mentes… um livro onde se respira liberdade, amor, ternura… (ia escrever xarel, hidranja, phisalis mas não quero exagerar).

* Quadro reproduzido na capa do livro (edição ASA)
imagem retirada daqui 

quinta-feira, 15 de abril de 2010

O Miúdo Que Pregava Pregos Numa Tábua - Manuel Alegre

Ainda “não estou certo de ter sido eu”… terá sido o miúdo que pregava pregos numa tábua? Ou qualquer um dos outros? Ou todos eles excepto um? Que importa, afinal? Ninguém sabe quem foi porque ninguém sabe quem é… e o que se sabe será sempre realidade, imaginação ou poesia?
De facto, nada pode saber-se de identidades passadas ou futuros incertos. A vida é uma viajem no efémero, vive-se como quem olha as águas de um rio e tudo passa viajando ou navegando… as águas do rio como as palavras que voam, encadeando-se ao ritmo do bater do coração, porque a vida (como o Zé Mafra, cigano de Coimbra) não tem casa, só tem caminhos.
Ontem e hoje, na vida como na escrita e como na guerra de Angola, as balas ainda assobiam. Há sempre uma bala a assobiar… Aquele que escreve o livro não sabe se é o rapaz que pregava pregos numa tábua e não sabe se era o outro, ou ainda outro qualquer, mas sabe que há balas e guerras que fazem zumbido nos ouvidos e chagas na memória.
Repentinamente, a poesia bateu com força na cabeça do miúdo. Mais tarde, as sílabas dos versos haveriam de se misturar com os zumbidos das balas nos ouvidos do miúdo que crescera.
O miúdo crescia e tinha um sonho: continuar Os Lusíadas. O sonho de qualquer poeta. O sonho, talvez, de qualquer de nós, que queremos continuar a memória. E vai contando as sílabas pelos dedos e vai descobrindo que nem sempre há métrica, às vezes há liberdade, há os versos livres… sons de palavras que se misturam com silvos de balas de Angola, música de pássaros de Águeda e com o murmurar das águas do Tejo. São “os ritmos e as sílabas com que se mede o mundo”.
Tudo – o futebol, a natação, a água do rio, os pássaros, a namorada – faz parte do rapaz que pregava pregos. Mas no meio de tudo isso está sempre a escrita: as palavras que procura e tantas vezes não encontra, os versos cujas sílabas nem sempre consegue contar pelos dedos. Os mesmos dedos com que tocava música nos dentes. A mão com que Miguel Torga segurou a caneta até ao fim…
E a procura da liberdade, da vida e das sílabas é a poesia que o miúdo (militante revolucionário que dantes pregava pregos numa tábua) acaba escrevendo, ou melhor, respirando em Paris. Em breve chegará a Primavera… talvez em Abril… talvez daqui a dez anos… ou dez anos após o Verão passado…
Imagem retirada daqui 

terça-feira, 13 de abril de 2010

Sensibilidade e Bom Senso - Jane Austen

Escrito em 1811, na fase mais conturbada das guerras napoleónicas, o enredo de Sensibilidade e Bom Senso desenrola-se no pacato e bucólico meio rural inglês, numa paisagem típica da literatura romântica, a fazer lembrar o nosso Júlio Dinis ou o dramatismo bucólico de Goethe.
A importância histórica desta obra é inegável: ela é precursora do romantismo literário que viria a marcar indelevelmente todo o século XIX.
A história baseia-se nos relacionamentos de Elinor e Marianne Dashwood, duas jovens órfãs de pai, que vivem com uma irmã mais nova, Margaret e a mãe, Mrs Dashwood. Trata-se de uma família da baixa burguesia rural inglesa que, quando o seu pai morre, fica com dificuldades económicas uma vez que a propriedade da família passa para John, o único filho homem. É nítido o contraste entre o carácter das irmãs, (Elinor mais racional e Mariane mais emotiva e romântica) que buscam o equilíbrio entre a razão e a sensibilidade na vida e no amor, como caminhos para a felicidade.
Pessoalmente, o aspecto que mais me marcou nesta obra foi a crítica de costumes: Austen denuncia, de forma cáustica e severa uma sociedade pequeno-burguesa obcecada com a estabilidade económica, com base nos laços matrimoniais. O casamento é visto como um simples trampolim para a estabilidade financeira e para o enriquecimento ou como meio de sobrevivência desta pequena burguesia pouco abastada. Esta denúncia é frontal e radical se atentarmos numa simples expressão como esta, a propósito de um noivo potencial para Elinor: “é um homem que vale quinhentas a seiscentas libras”. Frequentemente, os candidatos ao casamento são avaliados consoante as rendas que auferem.
Por outro lado, chega a ser chocante a forma como nos é descrita uma sociedade semi-aristocrática onde predomina o mexerico. Algumas das personagens parecem viver obcecadas com a intromissão na vida alheia, vivendo os problemas dos outros como se fossem seus, deixando emergir a inveja e o ciúme. É uma sociedade de aparências, onde se cultiva o exterior, onde, por exemplo, a profissão de sacerdote é vista como um remedeio para um homem arruinado, sem renda significativa.
Os sentimentos são sempre deixados em segundo plano, como se a alma humana tivesse de se adaptar à realidade concreta e não o inverso.
Em termos estilísticos, o livro constitui, na minha visão subjectiva de leitor comum, uma certa decepção. Fica-se com a impressão que um tema tão rico como este teria dado a azo a uma tremenda sátira de Eça de Queiroz, cheia de humor e sarcasmo. Mas Austen opta por um estilo severo, muitas vezes difícil e ainda prejudicado por uma tradução muito pouco conseguida, incluindo erros de ortografia e de construção frásica que dificultam imenso a leitura.
Em suma, um livro com uma importância notável em termos de História da Literatura mas que, a meu ver, não cumpre esse papel essencial que a leitura deve ter: o aspecto lúdico. Abundam diálogos por vezes fastidiosos, ilustrando o formalismo da época e a futilidade do meio social, deixando no leitor a sensação de que a história poderia ser contada de forma muito mais sucinta. Um livro, no entanto, valioso para os apreciadores da literatura romântica do século XIX.
Imagem retirada daqui 

segunda-feira, 5 de abril de 2010

Jonathan Srange & o Sr. Norrell - Susanna Clarke

Confesso que a literatura fantástica nunca me atraiu. Nem um bocadinho. No entanto, a avalanche deste tipo de romances tornou-se incontornável. Talvez fruto dos tempos de crise que vivemos e do inevitável movimento apocalíptico que já se faz sentir, a magia e o revivalismo aparecem-nos por todo o lado.
Neste contexto, alguém de extremo bom gosto literário me aconselhou este livro. Com algum masoquismo à mistura, lá decidi embarcar na aventura. 730 páginas de letra miudinha depois, foi com pena que fechei o livro. Por mim, bem poderia ter mais 730 páginas. Fascinante, espectacular, genial!
O livro conta a história de dois magos ingleses no início do século XIX, quando a Inglaterra tentava sobreviver às invasões napoleónicas. Strange e Norrell tentam restaurar a magia inglesa, perdida desde os tempos medievais do mítico Rei Corvo. Assim se desenrola uma trama fascinante de acontecimentos fantásticos, onde pontifica a luta entre as forças do mal representadas pelos elfos e as forças da magia humana que Norrell e Strange encarnam.
Nessa altura a magia inglesa estava confinada aos magos teóricos, fiéis estudiosos e gurdiões dos livros dos grandes magos de outrora. Mas a magia, como a vida, não termina nos livros. Strangre e Norrel trazem a magia para a vida; os seus actos mágicos são descritos de forma absolutamente fascinante por Susanna Clarke, acompanhando sempre as descrições com um fino e cativante sentido de humor. Este constante tom de humor faz com que a escrita de Clarke se assemelhe a um diálogo com o leitor, criando uma relação de proximidade que cativa. Por vezes o sorriso do leitor é substituído por saudáveis gargalhadas como quando Strange ressuscita soldados mortos e mutilados, desloca o curso de rios para enganar Napoleão, muda de lugar uma cidade espanhola causando a ira do governo que queria “tudo no sítio”, coloca Bruxelas na América com todos os seus habitantes, etc.
No mundo dos homens, o governo inglês recorre aos magos para derrotar Napoleão. E até os portugueses entram em cena: Wellington, o general inglês que veio para Portugal com o encargo de evitar as invasões napoleónicas recorre a Strange para, por exemplo, acabar com a praga que eram as lastimosas estradas portuguesas (já nessa altura). No mundo dos elfos, pelo contrário, reina a escuridão; alguns seres humanos são por eles atraídos de forma traiçoeira. Pelo meio fica a memória fascinante do reino de John Uskglass, o mundo perdido daquele que foi o maior mago de sempre e rei da Inglaterra Meridional, grande rival do reino dos Elfos, a terra de Faerie.
Embora seja clara a oposição entre o reino do mal e o reino dos homens, é admirável a forma como a autora se recusa a colocar o confronto em termos de oposição entre o bem e o mal, sendo o leitor encarregado de tal tarefa. Também entre Norrell e Strange, os homens não resistem a colocar-se do lado de um dos dois grandes magos (comparando essa tendência à questão política inglesa entre trabalhistas e conservadores) mas é sempre o leitor quem constrói tais juízos, como se o bem e o mal estivessem sempre à disposição dos homens para que estes escolham livremente.
Em suma, um livro fascinante que é já parte da história da literatura fantástica. Sem dúvida um clássico do género, imperdível para quem cultiva este género literário. E não só.
Para além de tudo o mais, esta obra constitui uma das mais belas homenagens que alguma vez se fizeram aos livros: eles são a fonte de todo o conhecimento mas o seu conteúdo precisa de ser transposto para a vida. É na vida e na felicidade dos homens que o conhecimento se torna significativo. E aí reside também a magia.
E a magia, indubitavelmente, existe. Ela está sempre onde estiver a nossa imaginação e, acima de tudo, a magia é tudo o que não compreendemos.