sábado, 15 de maio de 2010

O Grande Retrato - Dino Buzzati

Dino Buzzati é considerado um dos mais importantes escritores italianos do século XX, embora, a julgar por este livro (o único que li do autor) algo distante da genialidade criativa de um Italo Calvino, da profundidade e humanismo de Alberto Morávia ou da imaginação e criatividade de Umberto Eco.
No entanto, seria injusto formular um juízo de valor sobre Buzzati com base nesta obra. Trata-se de um pequeno livrinho com uma história algo delirante acerca de um cientista mais ou menos louco que desenvolve um misterioso projecto, uma máquina que recriaria uma espécie de super-inteligência artificial, mas com todos os ingredientes da alma humana.
É difícil formular um comentário ao livro sem revelar pormenores do enredo, uma vez que este é tão compacto, tão sintético que não nos deixa grande margem de manobra para analisar o livro sem referir aspectos fundamentais desse enredo.
No essencial, a mensagem fundamental do livro parece ser esta: não há sentido para a vida sem liberdade; e não há liberdade sem corpo. O misterioso professor Endriade, ainda marcado pela morte da sua primeira mulher, Laura, não consegue separar o projecto da sua dramática história pessoal. A dimensão do feminino e do amor humano acaba por revelar-se inseparável do lado racional do ser humano, por mais inteligência que a sua actividade envolva.
Um ser artificial, por mais perfeito que seja, mesmo que dotado de uma “alma”, ainda que construída pela ciência, nunca poderá imitar um ser humano. Não é, portanto a inteligência que nos faz humanos. Não é também a alma; ela é insuficiente. Talvez ser livre seja, essa sim, a condição essencial para ser verdadeiramente humano. Sem liberdade, é impossível atingir qualquer sentido para a vida humana.
Um livro simples, linear, que se lê agradavelmente durante um par de horas ou pouco mais. 

sexta-feira, 7 de maio de 2010

Almas Mortas - Nikolai Gogol

Almas Mortas é a última e mais marcante obra de Gogol e constitui uma referência importante na literatura russa na medida em que marcou a transição do Romantismo oitocentista para o realismo. Neste contexto, Gogol acabou por ser um dos maiores precursores dos grandes escritores russos Tolstoi e Dostoiévski.  
Almas Mortas foi uma obra maldita na época, pela crueza com que aborda a questão da servidão ainda em voga na Rússia naquela altura (1835). Num estilo directo e incisivo, Gogol aponta o dedo a uma sociedade anacrónica onde os servos constituíam propriedade dos seus senhores, que dispunham a seu bel-prazer das suas almas e dos seus corpos. O termo “almas” designa, na história da servidão russa os camponeses que eram propriedade dos seus senhores. O herói da narrativa, Chichiev, dispõe-se a comprar servos que haviam falecido mas que ainda tinham existência legal por não terem sido abatidos nas listas de recenseamento. O objectivo destas transacções só é revelado no final.
Numa excelente tradução, esta edição da Estampa apresenta-nos um pormenor que muitas vezes é desprezado: a manutenção dos nomes próprios na língua original, ao contrário de alguns maus exemplos, cada vez mais frequentes, em que se “aportuguesam” nomes de forma muitas vezes grosseira e ridícula.
O estilo de Gogol impressiona pela forma como constrói um verdadeiro diálogo com o leitor, constituindo uma proximidade que nos leva a ler como quem ouve uma estória.
Tal como Tolstoi e Dostoievski, Gogol critica asperamente a subserviência dos russos, que desprezam os inferiores e bajulam os superiores de forma descaradamente interesseira. Todos os vendedores de almas que o autor descreve ilustram as facetas mais negativas da alma humana e do povo russo em particular. É o caso de Manilov, um pequeno proprietário preguiçoso, sem vontade própria e sem ambição; uma viúva sovina totalmente desprovida de inteligência; Nozdriov, bêbado, mentiroso, jogador inveterado que recusa vender as suas almas mas dispõe-se de bom grado a jogá-las – símbolo do desprezo extremo pela alma humana; Sobakevitch diz mal de todos – é o exemplo da maledicência; Pliuskine é o mais avarento que se possa imaginar – tem mais de mil servos e os celeiros cheios mas vive na miséria.
Assim, o alvo maior da crítica de Gogol é a pequena aristocracia rural avarenta, uma espécie de classe média a que se juntam funcionários públicos corruptos e comerciantes desonestos. Este grupo contrasta com a alta aristocracia esbanjadora até ao extremo. Todos, sem excepção, são interesseiros e corruptos, usando muitas vezes uma delicadeza exagerada mas hipócrita para tentar enganar as pessoas com quem negoceiam. Prevalece a inveja e mesmo o ódio dissimulado. O bem público e a moral são completamente esquecidos. Os servos, esses, constituem apenas instrumentos de enriquecimento pessoal e símbolos de ostentação, sendo completamente esquecidos enquanto pessoas. Pelo contrário, são normalmente encarados como bêbados e preguiçosos e castigados duramente. A alienação interesseira das almas constitui o cúmulo, o expoente máximo do desprezo pelo ser humano.
Gogol faz também uma caracterização mordaz das mulheres da alta sociedade. Quase desprovidas de inteligência, são capazes de alimentar os maiores dos boatos. Preocupam-se acima de tudo com as aparências e o seu comportamento social gira sempre em torno do “galanteio” ou então da maledicência. O que é certo é que Gogol acaba por apontar o dedo acusador aos homens que, na sua maioria, se deixam envolver pela maledicência, pondo em causa tudo e todos com os boatos mais torpes. Na Rússia as pessoas gostam de falar de escândalos, diz Gogol. O leitor português não pode deixar de questionar: só na Rússia?
O final do livro é absolutamente brilhante, com a resposta a dois mistérios que se mantinham desde o início: qual a verdadeira personalidade de Chichikov (que Gogol habilmente vai escondendo) e com que intenção comprava ele as almas. A surpresa das respostas é tal que o leitor é levado a rever todas as explicações que o seu espírito foi construindo ao longo da leitura. 

segunda-feira, 3 de maio de 2010

Os da Minha Rua - Ondjaki

A coleccção Biis, da Leya e o Plano Nacional de Leitura estão de parabéns pela divulgação deste magnífico livrinho que é mais uma expressão de génio da nova literatura angolana.
Trata-se da história dos meninos de Luanda, com Ndalu como personagem principal, talvez representação autobiográfica do autor. Ndalu é um menino sensível, honesto, traquinas.
Algures nos anos 80 do século XX, Ondjaki apresenta-nos uma Angola que nada tem a ver com o país que a Comunicação Social se habituou a descrever. Não é a Angola das minas, da guerra crónica, da corrupção ou da miséria que a alguns convém propagandear. É a Angola do povo, dos meninos do povo que vivem felizes nas ruas de uma cidade feliz. São os meninos do povo, com a sua imaginação prodigiosa, de onde lhes vem aquele riso e aquela felicidade ingénua. São meninos de prazeres simples, sentimentos profundos e lágrimas fáceis.
É um livrinho escrito com ternura e que se lê com ternura e um sorriso que nos acompanha até à última página; um livro simples como os meninos, onde não há maldade, ódio nem guerra, porque isso são coisas de adultos.
Na infância destes meninos nem sequer é necessário sonhar: a realidade comanda as suas vidas e o seu presente é o quanto lhes basta para serem felizes: os amigos, a telenovela brasileira, o futebol, as brincadeiras e o mundo fantástico que constroem com os “camaradas professores”.
Ao longo do livro sobressaem os sentimentos nobres e profundos das crianças mas também há lugar à tristeza. Não aquela tristeza deprimida que muitos associam a África mas uma tristeza feita de doce melancolia, num tom talvez herdado da saudade portuguesa, como no comovente episódio da despedidas dos camaradas professores cubanos: “a despedida tem cheiro de amizade cinzenta”.
Enfim, um livro cheio de imaginação infantil, numa linguagem quase poética, povoado pela força bruta da amizade que as crianças sabem, como ninguém, alimentar.

domingo, 2 de maio de 2010

A melhor leitura do mês

Abril:

A minha classificação: 9 em 10

Meses anteriores:

Janeiro - "Kafka à Beira-Mar" de Haruki Murakami (8 em 10)
Fevereiro - "Werther" de Goethe (8 em 10)
Março - "Entre os Assassinatos" de Aravind Adiga (8 em 10)