quinta-feira, 30 de setembro de 2010

A melhor leitura do mês - Setembro

Dos dez livros lidos neste mês, houve de tudo; desde um barrete chamado O Toque da Morte, até uma descoberta sensacional que foi O Físico, passando por uma pequena maravilha de oração em forma de livro (Morreste-me), uma fantasia encantadora (A Inaudita Guerra da Avenida Gago Coutinho) e dois Auster's antiguinhos e magníficos.
Na hora de escolher o melhor, desta vez, não tive dúvidas: o eleito é O Físico, pela profundidade e fidelidade da abordagem histórica bem acompanhada por uma narrrativa apaixonante. Um livro cheio de conhecimento mas também de criatividade.
9.5 pontos (em 10) para Noah Gordon, logo seguidos dos dois livros de Paul Auster: Palácio da Lua e Da Mão Para a Boca. Auster é, na minha opinião, o génio mais consistente da literatura contemporânea: um autor que nunca escreveu um verdadeiro clássico mas seguramente será incapaz de alguma vez escrever um mau livro; nem sequer um livro apenas bom :)

quarta-feira, 29 de setembro de 2010

Caderneta de Cromos - Nuno Markl

Ora aí está, definitivamente, o livro que todos os trintões e quarentões deveriam ler. E os outros “ões”, já agora, também. Quer dizer, definitivamente não, porque será com ansiedade, com uma quase angústia que esperarei uma segunda Caderneta de Cromos, assim queira a memória do Nuno Markl.

E porque é que eu afirmo que todos os “ões” deviam ler? Porque este livro é muito mais que uma colecção de memórias. É um exemplo de vida. É uma filosofia. Quase um culto. Eu explico: estou um bocado farto de saudosistas… bem, dita assim a coisa até parece um contrasenso; estará porventura o leitor a pensar: “mas este tipo é doido ou faz-se?”. Não é o caso (ainda). Não estou é a explicar bem. Segunda tentativa: o saudosismo é uma coisa tristíssima; deprimente, mesmo, porque agarra no passado e diviniza-o. Os saudosistas passam o tempo a gemer: “ai no meu tempo é que era!”. O Nuno Markl não é assim e este livro mostra-o bem: o passado tem de ser apenas o tempo em que aconteceram coisas com piada. Mesmo coisas que possamos encarar como más mas que, com o devido toque de sentido de humor, se tornam autênticas anedotas. Por exemplo: havia brincadeiras, que o Markl aqui descreve, que eram autênticas torturas, como o jogo do alho (também conhecido como jogo da mosca) em que saltávamos desalmadamente uns para cima dos outros até que a pilha não se aguentasse; os primeiros a cair iriam depois servir de “base” à pilha seguinte. Isto é violento. Isto é sado-masoquismo. E o Nuno Markl confessa que era dos piores da escola dele a jogar isto; ou seja, levava sempre com os outros todos em cima. Pois então onde está a tal “filosofia” disto? Está na forma estóica como o autor confessa isto; como se fosse a melhor piada do mundo. E o certo é que se trata mesmo de uma bela piada: poucas coisas há de mais hilariante do que um caixa de óculos levar com uma porrada de gandulos em cima, sem dó nem piedade.

Mas os motivos para rir vão muito mais longe: desde as figurinhas tristes que todos fazíamos a jogar ao quarto escuro na vã tentativa de apalpar algo de jeito, até às batalhas de pedradas e fisgadas com que enchíamos as nossas tardes de fim de semana na aldeia.

Depois há o sempre infalível recordar das velhas marcas comerciais que atravessaram a nossa infância: as Bom-bokas com que pintávamos a cara; as canetas Bic que usávamos como canhões para expelir balas de papel previamente mastigado, as pastilhas Pirata que deviam ser fabricadas com algum derivado de petróleo misturado com cimento e açúcar, os Estrumfes, o Cubo mágico, etc etc. Enfim, um elenco de heróis míticos da nossa infância onde não falta, obviamente, o José Cid, o Sandokan, os Cinco, a Abelha Maia e até esse autêntico manual de iniciação sexual para adolescentes solitários que era a revista Gina.

Este livro só vem reforçar uma convicção que tenho há muito tempo: a de que o Nuno Markl, quando nasceu não chorou; riu. O diacho do homem não diz nem escreve nada que não me ponha a rir. E esta é ou não uma grande filosofia de vida?

Bem haja, pois, o homem que mordeu o cão e venha de lá a segunda caderneta.

sábado, 25 de setembro de 2010

A Inaudita Guerra da Avenida Gago Coutinho - Mário de Carvalho

Um homem sobe num elevador que se “esquece” de parar no andar correcto e ruma ao céu sem aviso nem propósito.
Dois frades enterram os seus irmãos, mortos de misteriosa maleita; um deles desaparece depois, no espaço. O frade sobrante, esse, será disputado por Deus e pelo Diabo.
No dia em que a mulher do funcionário Teles saiu de casa para escrever poemas, tudo lhe correu de forma trivialmente anormal: monstros em casa, luzes misteriosas e relâmpagos parados em cima do Tejo. Anormalidades banais!
Estes são três exemplos dos contos que compõem este livrinho fantástico. Contos do fantástico que é a vida. Contos de sonho ou pesadelo mas sempre reais.
E a pérola maior: o conto que dá titulo ao livro: uma horda de mouros invade Lisboa e vê-se rodeada de automóveis. Uns de espada em punho à procura de cristãos para degolar. Outros, impávidos perante a invasão. Cavalos, espadas e turbantes mouros misturam-se com automobilistas apressados. E nem a Polícia de Intervenção, nem os blindados do exército, conseguirão pôr termo à confusão.
E que sarilho seria se a deusa Clio não acordasse de repente para voltar a pôr tudo no seu devido tempo.
Este conto é uma fantástica alegoria da estupidez da guerra, da irracionalidade que os homens trazem ao mundo.
Foi o primeiro livro que li de Mário de Carvalho. E, por sinal, será o primeiro de muitos.

quarta-feira, 22 de setembro de 2010

A Conjura - José Eduardo Agualusa

Até ler este livro só conhecia Agualusa desse fantástico “Barroco Tropical”. Este livro, no entanto, é completamente diferente. O enredo decorre entre finais do século XIX e inícios do século XX, até à proclamação da República em Portugal. Tudo se passa em Luanda, entre a comunidade lusa na capital de Angola, em contraste com a gente humilde nativa.
Estávamos no tempo de uma nova vaga de colonização em que, após o fim da escravatura se procurava explorar nas colónias as matérias primas para as indústrias nascentes. Esta corrida às colónias levara a intensas disputas entre as nações europeias e Portugal deparava-se com as exigências de supremacia britânica. N Conferência de Berlim, onde as fronteiras das colónias africanas foram traçadas a régua e esquadro, Portugal foi praticamente humilhado pelos ingleses que não aceitaram a proposta portuguesa, o famoso “mapa cor-de-rosa” em que exigíamos a posse de todos os territórios entre Angola e Moçambique.
Perante isto, a colónia portuguesa em Angola começa a desacreditar a própria monarquia e surgem as primeiras vozes republicanas e independentistas.
Angola era, naquele tempo a colónia onde Portugal “despejava” muitos dos seus condenados ao degredo, que acabavam por se misturar com a população nativa. A prática do degredo era mais uma expressão do desprezo com que eram encaradas as colónias; Portugal era já visto como o colonizador injusto e explorador, tanto pelos negros como por parte da elite branca luandense. O governo de Lisboa, não raras vezes, incentivava mesmo o racismo, procurando convencer esta elite da inferioridade do negro, encarando-o como um inimigo.
Esta análise histórica de Agualusa aborda um lado do colonialismo que, a meu ver, tem sido algo depreciado pelos historiadores: as relações entre os administradores brancos e a população nativa, em confronto com as decisões e recomendações do governo central. Estes brancos de Luanda encontravam-se sempre a meio caminho entre os dois pólos, umas vezes seguindo a agradável posição do poder outras vezes aliando-se aos nativos na defesa da autonomia que também desejavam. A nação fomentava o nacionalismo; no entanto, muitos deles já se sentiam mais angolanos que portugueses. Era este o drama de quem tinha tanto a ganhar como a perder: arriscar um dos lados era uma tentação. Mas também um perigo. Se os angolanos lutavam pela autonomia que lhes sorria como uma bela perspectiva de libertação, por outro lado Lisboa oferecia um certo ideal de civilização que imitavam nos costumes e lhes prometia a eternização do poder.
Quando o comerciante Carmo Ferreira pretende casar com a bela negra Josefina, vem, ao de cima todo o preconceito racista que deixava esta elite a meio caminho entre o progresso e o obscurantismo; entre a liberdade que a República prometia e o racismo empedernido.
Mas o escritor e zoófilo Severino, um mulato, não desiste da sua luta. Ele sonha com a independência e luta por ela. Ele compreende como ninguém o espírito de Angola. Pelo contrário, os brancos de Angola não queriam uma verdadeira independência; queriam Angola independente mas governada por portugueses.
Pelo meio surgem as primeiras catástrofes: as primeiras matanças da luta pela libertação; o surgir de um movimento pela liberdade que viria a durar quase um século e milhares de mártires.
Em suma, uma obra que vale pelo testemunho de uma época de charneira na história do povo angolano; uma análise histórica interessante, envolvida numa ficção que torna a leitura agradável e fluida.

sábado, 18 de setembro de 2010

Inês de Portugal - João Aguiar

Nunca a história de D. Inês de Castro e de D. Pedro I foi contada com tanta sensibilidade.
Nesta obra, maiores do que os factos são os sentimentos: o amor intenso de Pedro e Inês, a malvadez interesseira dos irmãos de Inês, a frieza e insensibilidade do rei Afonso IV, o sentido de justiça de D. Pedro e o amor do povo por este rei injustiçado mas justiceiro e apaixonado, também, pelo povo.
João Aguiar revela nesta obra toda a sua enorme vocação para narrar os acontecimentos de forma quase cinematográfica: uma linguagem concisa e precisa, emocionante na narração, objectiva nas descrições e precisa nos factos históricos fundamentais.
Aguiar aborda os acontecimentos com uma profundidade na análise psicológica que vai muito além do amor trágico de Pedro e Inês. Por exemplo: a maioria dos historiadores relegam para segundo plano uma situação que, numa abordagem preconceituosa deixaria pouco favorecida a imagem do rei justiceiro: a amizade “colorida” que nutria pelo escudeiro Afonso Madeira, uma amizade a que o próprio cronista Fernão Lopes se referia nestes termos: “que o amava muito mais do que aqui se deve dizer”.
Outro pormenor que Aguiar desenvolve com perspicácia é a importância da opinião pública no desenrolar dos acontecimentos: ontem como hoje, a maledicência parece ter tido um papel fundamental na decisão trágica de Afonso IV de mandar decapitar Inês: os murmúrios da corte, as intrigas palacianas e até o típico maldizer popular, que manchavam o amor com os fantasmas hipócritas do pecado. Ontem como hoje, foi o triunfo da mais antiga e estúpida tradição nacional: a maledicência.

Em conclusão: um livrinho que se lê com imenso prazer, sem esforço, com emoção e que faz justiça àquele que foi um dos personagens mais brilhantes da História de Portugal: D. Pedro I, o rei que foi homem, que amor e odiou, que foi cruel mas justiceiro, impiedoso mas capaz de trazer sempre o povo no coração.
O livro serviu de guião ao filme de José Carlos de Oliveira, com Cristina Homem de Mello no papel de Inês e Heitor Lourenço como D. Pedro.

quarta-feira, 15 de setembro de 2010

Da mão para a boca - Paul Auster

Depois de ler quase toda a obra ficcional de Paul Auster, é curioso ler pela primeira vez um livro autobiográfico como este “Da Mão Para a Boca”. Quando escreveu este livro (1996), Auster já era a estrela que é hoje mas relata a sua juventude e as primeiras e penosas experiências literárias. Depois de sair de casa dos pais, ainda muito jovem, Auster foi marinheiro, argumentista de cinema, tradutor, dramaturgo de peças mal sucedidas, empregado de vários serviços mal pagos, etc. desesperado com a falta de dinheiro para sobreviver (ele e a família) chegou a encarar a hipótese de fazer criação de minhocas na cave de casa, tentou sem sucesso escrever folhetins pornográficos e tentou desesperadamente vender um complexo jogo de cartas em que tentava imitar um jogo de basebol. O seu primeiro livro (policial) foi um fracasso mas acabou por lhe render uma pequena quantia que lhe possibilitou lançar-se nas verdadeiras aventuras literárias. Acabou por encontrar o sucesso no momento em que se encontrava à beira do desespero total, curiosamente após a morte do pai. Foi nessa altura que escreveu o brilhante “Inventar a Solidão” e a genial “Trilogia de Nova Iorque”. Auster termina este livro neste ponto da sua vida, com a frase “Chegava de escrever livros por dinheiro. Chegava de me vender”. Tinha na altura cerca de 32 anos.
Regressando a este livro, podemos concluir que Auster foi sempre um homem à procura da sua identidade. Nesta fase da sua vida revela-se um aventureiro, mergulhado na incerteza e no limite do desespero. A literatura, como todas as artes, constrói uma reduzida elite de super-estrelas, milionários famosos como hoje é Auster em contraste com uma miríade de “proletários da escrita”, como ele próprio foi durante tantos anos. Estes limitam-se a trabalhar para sobreviver, como qualquer operário mal pago. Entre os escolhidos pela fortuna e estes trabalhadores da escrita (os que escrevem “da mão para a boca”) há um fosso enorme. Auster conhece os dois lados.
Para quem conhece a obra de Auster é fascinante descobrir neste livro que as características típicas da maioria dos seus personagens principais não são mais que as características da personalidade do próprio Auster: ambicioso mas generoso, aventureiro, crítico, desprendido, sonhador, livre mas, acima de tudo, detentor de uma sensibilidade humana peculiar, um lado humano e solidário que se sobrepõe a todas as ambições e objectivos materiais.
Este humanismo é, a meu ver, a qualidade maior de Auster como escritor e como ser humano.

domingo, 12 de setembro de 2010

O Toque da Morte - Stephen Booth

Desde os tempos do grande Mestre Sir Arthur Connan Doyle, já há mais de cem anos, a literatura policial tem sido um género quase estafado, tal é o número de romances do género que todos os anos são publicados. Esta abundância, explicada por uma procura constante e entusiasmada, exige cada vez mais inovação. Já não é possível ficar pelas sessenta paginazinhas da colecção Vampiro. Daí que, escritores com alguma ambição, como é o caso deste, procuram adornar as suas histórias com temas de intervenção política, ecológica, social, etc. É o que se passa com este livro: uma miscelânea estranhíssima, uma espécie de sopa da pedra, constituída por uma investigação do tipo CSI rural, onde não falta a detective jovem e bonita, ao lado do polícia ultra-honesto, solteirão e desarrumado, à mistura com uma estória de crime e mistério, onde se fala também da caça e dos crimes ou “crimes” que envolve, a comercialização de carne de cavalo e até a espionagem do tempo da guerra fria e o medo do holocausto.
De tudo isto resulta um enredo pastoso, onde o suspense se perde no meio de tantas páginas de diálogos inúteis, considerações secundárias, descrições desnecessárias e, a cereja em cima do bolo, um final previsível.
Na verdade, cada vez é mais verdade que comprar um livro porque é novidade, porque tem uma capa apelativa ou porque foi muito bem propagandeado pela editora constitui um verdadeiro jogo de roleta russa com o dinheiro e o tempo que se gasta a ler.
Um livro absolutamente dispensável. Perante esta obra só me ocorre pensar em tantos escritores portugueses que certamente passam desapercebidos às grandes editoras e com uma qualidade indubitavelmente superior a este “Toque da Morte”.

quinta-feira, 9 de setembro de 2010

Morreste-me - José Luís Peixoto

Escrito como quem reza, sentido como uma oração, lido e sofrido com uma lágrima hesitante, Morreste-me é uma pequena e bela obra de arte. Bela e triste. Isto leva-me a pensar numa velha questão de filosófica: “pode a beleza ser triste”? Pode, digo eu. Talvez a beleza não esteja na coisa em si, neste caso na escrita, mas no admirável espelho da nossa alma. Um sentimento, uma dor de alma, um sofrimento atroz, são coisas belas quando, admirados, sentimos o nosso próprio espírito abalado. Talvez a arte seja tudo aquilo que mexe connosco. É nesse sentido que Morreste-me é uma belíssima obra de arte.
As palavras de J. L. Peixoto não são feitas de letras. São desenhadas com os átomos da tristeza. São partículas de dor que se juntam para formar dores de alma que irrompem destas páginas e nos invadem o espírito sem piedade.
Peixoto é um génio. Porque escreve bem? Não. Muitos escrevem bem. Mas poucos conseguem escrever a alma. E muito poucos conseguem escrever na alma do leitor. Peixoto invade-a; toma-a de assalto; escraviza-a e tortura-a. Ao ler esta tristeza, o leitor maravilha-se com a própria dor. Como será isto possível? Que estranho prazer é este de sofrer? Ou será apenas a beleza em tons de negro? Expor a dor, partilhá-la com o leitor, mergulhar na escuridão para depois a transportar até quem lê, será essa a beleza destas palavras?
Seja como for, ler Peixoto não é apenas um exercício estético. É descobrir a beleza da escuridão, da dor mais atroz; mas é também vivê-la e revivê-la porque este livro não pode ler-se apenas uma vez.

segunda-feira, 6 de setembro de 2010

Palácio da Lua - Paul Auster

Marco Fogg é um jovem que nunca conheceu o pai e perdeu a mãe na infância. Abandonado no mundo é protegido por um tio que, também ele, desaparece bastante cedo da sua vida. Fogg partirá assim, antes dos vinte anos, numa viagem por vezes obscura e absurda, ao interior de si próprio, em confronto com um mundo não menos complexo e absurdo.
Fogg herdou do tio Victor 1492 livros; um numero que corresponde ao ano da descoberta de Colombo. Esse era também o nome da sua universidade: Columbia. Assim, a vida de Fogg transformar-se-á numa intensa procura de um novo mundo; o mundo dos seus sonhos, da sua identidade.
Confrontando-se com as imposições da vida, nomeadamente a falta de recursos materiais, Fogg vai vendendo os livros. À medida que se separa deles, perde sempre um pouco mais do tio Victor. E de si mesmo. No entanto, vendeu os últimos livros no dia em que o homem pisou a lua pela primeira vez. A mudança impunha-se; novos mundos nasceriam na vida de Marco Fogg.
Este é um dos primeiros livros de Auster. No entanto, já aqui se revelem algumas das inquietudes que povoam toda a produção ficcional deste escritor genial: a solidão humana, a procura da identidade e um intenso afecto por Nova Iorque e pela generosidade dos nova-iorquinos. Quando, na miséria absoluta, Marco vive no Central Park, como um vagabundo, é admirável a forma como os nova-iorquinos revelam generosidade e compreensão perante a miséria. No entanto, a vida de Fogg transforma-se na imagem da solidão, bem no coração da maior cidade do mundo.
Mais tarde, ao serviço de Effing (um idoso paralítico e cego), Fogg é o intermediário entre o velho e o mundo; paulatinamente, Effing vai revelando a sua função neste livro: ele é o exemplo de um homem que percorreu toda a vida à procura de uma identidade, de um sentido, uma razão para viver. Ele viveu sob dois nomes, à procura do seu lugar na vida. Uma das tarefas de Fogg é escrever o obituário de Effing, que este lhe vai ditando – nada menos que doze blocos de apontamentos. Uma vida que, afinal, cabe num obituário!
Só houve dois momentos na longa vida de Effing em que ele se sentiu realizado e em paz consigo mesmo: o primeiro momento é quando passa um ano como eremita, pintando no meio do deserto, sem a pressão dos outros, sem contas a prestar. Mas nem aí haveria futuro…
O segundo momento é como que o culminar da sua viagem de vida: quando distribui dinheiro pelas ruas de Nova Iorque. A seguir, foi a morte. A seguir foi a morte. Mais uma vez, não havia futuro… mas, dessa vez, houve redenção; o círculo fechou-se no sentido da vida…
Para lá do tom melancólico de muitas páginas de Auster, o escritor revela uma intensa simpatia para com o ser humano, de tal maneira que o leitor é levado a simpatizar com todos os personagens. Por exemplo, Charlie era um louco. Apenas por ter sido vítima da suprema maldade que um ser humano é capaz de construir: a guerra.
Na parte final do livro as personagens principais cruzam-se numa sucessão de incríveis coincidências. Tudo se passa como se, na verdade, o destino dos homens fosse determinado por misteriosas forças de atracção. Talvez a vida humana seja mesmo comandada por um qualquer Palácio da Lua. Como se a vida fosse uma imensa teia, cujos fios por vezes seguem paralelos e outras vezes se cruzam, seguindo caminhos diferentes e irreconciliáveis.
Fogg conservava na carteira uma frase de um bolinho da sorte encontrado no Palácio da Lua (restaurante): “O Sol é o passado; a Terra o presente e a Lua o futuro”. Talvez apenas a Lua seja o futuro. Porque tudo é efémero excepto a mudança. Só a mudança é permanente. As fases da vida, como as da Lua, talvez sejam apenas apeadeiros da mudança… a vida como uma enorme viagem…
Sem dúvida uma dos melhores livros do melhor escritor da actualidade.

sexta-feira, 3 de setembro de 2010

Constantino Guardador de Vacas e de Sonhos - Alves Redol

Constantino Guardador de Vacas e de Sonhos é um livrinho ingénuo, puro, transparente, apaixonado. Alves Redol, um dos maiores vultos da literatura portuguesa do século XX apresenta-nos aqui um dos exemplares mais puros do neo-realismo português, no seu estado mais puro e naif.
Constantino é um menino como qualquer outro. Frequenta a escola primária, é inteligente mas prefere contar ninhos em vez de saber de cor os afluentes do Mondego ou do Guadiana. O único afluente que lhe interessa é o Trancão, que no seu sonho o levará ao Tejo e ao grande Mar. Constantino guarda vacas como quem guarda sonhos, transportando-os numa alma risonha que encara o futuro com aquela nuvem de sonhos que só a infância nos pode oferecer.
Para quem, como eu, cresceu no campo, ler este livrinho é uma bela viagem à infância; ou melhor, ao que de mais belo tem a infância no campo: os ninhos que se contam e cujo segredo se guarda como tesouro, o trepar às árvores como quem do alto vê o futuro, as aventuras no rio onde se aprende a nadar à custa de sustos e goladas de água, as travessuras nos quintais e, acima de tudo, aquele viver irmanado com a natureza, com os pássaros, as plantas, os animais domésticos, etc.
Nem a impiedosa palmatória, nem as más condições da vida no campo, impediam Constantino de ser feliz. Porquê? Porque ele tinha um sonho. Não interessa se o realizou; não interessa sequer se era realizável; o importante é que o guardou. Assim, por detrás de uma narrativa aparentemente ingénua, Alves Redol transmite-nos uma mensagem que devemos reter e recordar sempre: o sonho é que nos guia; o sonho é que nos faz viver.
Em resumo, um livrinho imperdível, de leitura muito agradável, numa linguagem simples do povo que somos nós; um testemunho cristalino das raízes mais profundas de onde todos nascemos: da terra-mãe.

quinta-feira, 2 de setembro de 2010

O Físico - Noah Gordon

Pouco tempo depois do ano 1000, em Londres, a infância de Rob é verdadeiramente catastrófica: o pai morre de doença e a mãe num parto. Os filhos, pequenos, são entregues a estranhos e separa-se uns dos outros.
Rob J. é aceite como ajudante de um barbeiro, ele também saído de uma infância desgraçada (pais mortos pelos Vikings num contexto de guerra atroz entre ingleses, Vikings e Dinamarqueses, em finais do séc. X).
Como ajudante de barbeiro começa a adaptar-se à vida de cirurgião ambulante com apenas 9 anos. O barbeiro revela-se um excelente educador, castigando duramente em caso extrema mas usando também o elogio como forma de fazer progredir o rapaz. Mostra-se amigo e justo.
Rob J. vai-se tornando malabarista para atrair os clientes. Revela grandes talentos; acima de tudo uma imensa capacidade de aprendizagem.
Depois revela-se o “dom” – sentir a morte nas mãos dos pacientes: uma mistura curiosa de superstição, sensibilidade e intuição. Na ausência do conhecimento cientifico são estas as alternativas na Europa Medieval, mergulhada cada vez mais num conservadorismo católico que fomenta a ignorância e a superstição.
A Inglaterra tinha acabado se sair de uma fase de invasões sucessivas e reinados ruinosos. A época era de miséria mas também de esperança: o novo século, acompanhando o novo milénio, seria o momento do arranque da Inglaterra como potência europeia. O enredo situa-se exactamente nesse importantíssimo ponto de viragem que foi o reinado de Canuto, aquele que lançou as bases da modernização agrícola inglesa.
O instinto de violência e o próprio prazer que esta por vezes envolvia era algo perfeitamente aceite na sociedade, ao contrário do que se passa hoje: o culto da violência persiste nos nossos tempos mas é camuflado. No século XI, pelo contrário, as lutas, de homens ou de animais, eram os espectáculos mais apreciados, em todas as classes sociais.
Após a morte do barbeiro, Rob segue um físico judeu e estabelece o seu grande objectivo de vida: tornar-se físico. É imediatamente atraído pela grande sabedoria e tradição judaica na medicina; os judeus eram, de facto, os melhores.
É com os judeus que Rob empreende a grande viagem, atravessando a Europa e o Médio Oriente. É nessa viagem que conhece Mary, com quem viria a casar.
O médico judeu fala-lhe do grande Avicena e da escola médica do oriente, dos muçulmanos. Rob começa a ver a ciência como algo que une os homens, ao contrário da religião. Cristãos, judeus e mouros odeiam-se mutuamente; mas a ciência é a mesma.
[Parêntesis curioso: um judeu descrevendo os camelos - “longas pestanas que lhe davam uma estranha aparência feminina J.]
Toda a obra revela uma valoração muito positiva dos judeus: puristas nos costumes e tradições, fiéis às leis religiosas, solidários, honestos. Das 3 religiões descritas, só nesta os preceitos são rigorosamente cumpridos. Será mesmo assim ou estaremos perante uma visão subjectiva do escritor? Os judeus não pecam? Não cedem às tentações da violência, do sexo e do egoísmo?
Por exemplo em relação aos cruzados (guerreiros cristãos) a descrição é nua e crua: bêbados, violadores e ladrões.
No entanto, realce-se a convivência pacífica entre judeus e muçulmanos (quando Rob é já aprendiz de físico na Pérsia). Se observarmos o que se passa hoje só podemos chegar a uma triste conclusão: foi a política que os desuniu.
Já na Pérsia Rob testemunha os rigores da religião muçulmana; disfarçado de judeu, ele observa costumes violentos, castigos terrivelmente severos destinados a garantir o funcionamento do sistema social. Ou apenas culto da violência? Ontem como hoje…
Durante a estadia na Pérsia Rob depara com a peste; a mesma peste bubónica que devassou a Europa medieval. Perante o perigo declarado de contágio, é extraordinário como as pessoas de dispunham a acompanhar os moribundos, sem medo da morte. Mas é esta a realidade histórica: a morte era algo familiar, algo comum que as pessoas temiam muito menos que hoje.
Um dos momentos altos do livro: um homem agoniza com peste. Três estudantes de medicina rezam. Um, cristão, reza a Jesus; outro, hebreu, reja a Iavé; outro, muçulmano, reza a Alá. O homem cura-se. Os três estudantes dão graças. Cada qual ao seu Deus.
Mais adiante no livro, um outro exemplo magnífico de tolerância religiosa: o judeu Mirdin, amigo de Rob, explica que as diferentes religiões são como diferentes pontes para atravessar um rio que separa os homens de Deus. Se alcançarmos Deus, será importante saber por que ponte passámos?
A história de Rob é um verdadeiro hino ao conhecimento científico. Por exemplo: todas as religiões proíbem a dissecação de cadáveres mas Rob não hesitará em fazê-las. É o triunfo do saber sobre a superstição. É com esse “crime religioso” que Rob desvenda o enigma da terrível e mortal “dor do lado direito”: aquilo a que hoje chamamos apendicite. Outro exemplo: Rob descobre que o álcool é mais eficaz que os óleos para desinfectar ferimentos, ao contrário do que diziam os mestres tradicionais.
Mas, para além do elogio da ciência há também nesta obra um claro elogio do amor: só ele é capaz de despertar uma coragem a toda a prova, como casa com uma cristã, disfarçado de judeu, numa terra de muçulmanos; um exemplo curioso é o descaramento com que Rob pratica o Kama Sutra com a esposa do grande Mestre dos Físicos, correndo risco de morte perante a implacável justiça religiosa.
Em suma, uma obra magnífica, muito rigorosa em relação aos factos históricos como a escola médica de Ibn Sina (conhecido no mundo cristão como Avicena, o maior médico do antiguidade). Milhares de páginas terá lido o autor para escrever este livro! Um livro que merece ser lido e relido, tal é a riqueza e o encanto das narrativas e tão eloquente é o elogio da ciência, da tolerância entre povos e do amor.

A Melhor Leitura do Mês

Neste mês a escolha foi bastante difícil.
Dos doze livros lidos destaco quatro:
 O Outono do Patriarca - Gabriel Garcia Márquez
 As Cidades Invisíveis - Italo Calvino 
 Uma Casa na Escuridão - José Luís Peixoto
 Norwegian Wood - Haruki Murakami
Ou seja, três monstros sagrados da literatura mundial e um jovem escritor português.
Os livros de Márquez e de Calvino são marcos históricos. São clássicos do século XX. O de Murakami foi a obra que o lançou no firmamento dos melhores do mundo.
No entanto, o prazer de ler não é determinado pelas marcas da história.
Por isso, a minha escolha do melhor do mês vai para José Luís Peixoto.




quarta-feira, 1 de setembro de 2010

Kikia Matcho - Filinto de Barros

Kikia Matcho pode ser traduzido do crioulo como “Mocho Macho”, um animal símbolo da desventura, da desgraça.
Este livro surpreendente, de um escritor guineense pouco conhecido entre nós, fala-nos, numa liguagem simples, do povo simples da Guiné, de um recém-licenciado na Europa, Benaf, que regressa à Guiné aquando da morte de um tio, ex-combatente. Fala-nos também de Papai, outro ex-combatente; ele é a voz da saudade e do lamento; da tradição e do desengano.
A narrativa lentamente se transforma numa profunda reflexão sobre as consequências da guerra colonial e as desilusões que se seguiram. No fundo trata-se simplesmente de dar conta da miséria de um povo escravizado por antigos e novos colonizadores; os “tugas” mas também os novos senhores, porta-vozes de um sistema político que depressa esqueceu o povo. Um povo que foi vítima da História, ou dos homens que a fizeram.
A luta contra o “tuga”, o português colonizador tinha unido os povos africanos. Guineenses e cabo-verdianos juntos no PAIGC de Amílcar Cabral, tinham no inimigo comum um traço de união. No entanto, a independência trouxe a desunião; começara o assalto ao poder!
Neste livro é bem patente o lamento perante a nova realidade da Guiné: o poder político desprezou os combatentes e a nova geração esqueceu a Luta e os seus heróis.
Por outro lado, a desilusão perante Portugal: os novos democratas de Lisboa convidam os africanos a emigrar para depois os instalarem em bairros de lata, sem condições de trabalho, condenados à miséria e à criminalidade.
Na Guiné, entretanto, o povo vai tentando esquecer estas desgraças do “progresso”; o saber tradicional, a cultura do povo guineense é misturada com novas influências e despersonalizada; as tradições são consideradas pelos novos como superstição; é o caso do jovem licenciado Benaf, que não compreende a alma africana porque se ausentou dela e se aculturou perante o “branco”.
Em suma, trata-se de uma leitura agradável e muito importante para compreender o fenómeno da descolonização e dos problemas por que passam os países lusófonos de África. É a visão do africano perante as desgraças que a colonização e a descolonização precipitada provocaram. Para nós, portugueses, esta crua realidade que Filinto de Barros descreve é e será ainda uma ferida aberta na consciência portuguesa e europeia.