terça-feira, 31 de dezembro de 2013

A lenda de Martim Regos - Pedro Canais



Sinopse:
Em plena época dos Descobrimentos um herói português, aventureiro, descobre a plenitude da vida nos quatro cantos do mundo. Um livro na esteira da Peregrinação, de Fernão Mendes Pinto.
A história de Martim Regos coincide com o descobrimento do mundo. Este misterioso português nasce no Ribatejo em 1453, mas foge para a Granada muçulmana durante a adolescência e converte-se ao islamismo. É já com o nome de Abu Rial que percorre o continente africano, anda pelo Egipto, explora a costa do Brasil, visita Veneza, conhece Meca e Jerusalém, chega à Índia e acaba por ser o primeiro europeu a entrar na China depois de Marco Polo.
Pelo meio de tudo isto, conhece o amor das negras em África, das índias do Brasil, das indianas do Malabar e das aborígenes do Pacífico. No entanto, permanece fiel à mesma paixão: uma galega que conhece aos quinze anos.
Um herói que ultrapassa o seu próprio tempo - apaixonado pelos novos saberes, viajante incansável, aventureiro e audaz, mas fiel a si próprio, às suas inquietações e a uma infinita determinação que nunca o abandonou.
Já perto do fim, sente a obrigação de deixar como herança os conhecimentos que adquiriu e de mostrar como é possível viver em qualquer parte do mundo, descobrindo a plenitude da vida. 

Comentário:
Às vezes encontram-se surpresas assim. E quando isto acontece, eu pergunto-me onde estava eu quando este livro apareceu e não dei por ele. Ou melhor, pergunto-me onde anda a crítica e onde anda o bom gosto deste país quando impediu que este livro tivesse o sucesso brutal que deveria ter tido?
A Lenda de Martim Regos é um livro portentoso sobre a vida de um herói anónimo no tempo do Império Português. Um herói ou anti-herói como foram todos os aventureiros lusos desses tempos. Martim é o português das sete partidas, o homem que já nesse tempo correu mundos à procura de ser feliz.
Ao longo do livro, Martim Regos percorre os quatro cantos do mundo, o mesmo é dizer, do Império Português e das demais partes por onde as lusas gentes ousaram mercadejar. Por todo o lado, Martim descobre maravilhas e desgraças. Quando, ainda criança, viaja para Granada e se converte ao islamismo, por exemplo, Martim fica perplexo com a Guerra Santa; sendo Alá Deus-Pai como pode ele fazer guerra a ele próprio, uma vez que também os cristãos veneram Deus-Pai? Martim é muçulmano e católico; embora acredite que o Deus seja um só, reza aos dois para maior segurança das suas preces. Afinal, há coisas que os homens fazem e que nem os próprios homens entendem…
Martim foi por esses mares fora “tirar as medidas ao mundo”. É o saber de experiência feito; o experiencialismo renascentista. No entanto, todos esses saberes são julgados inúteis pelos doutores da Igreja e Martim é rejeitado nos Estudos Gerais porque não sabia, sequer, o sexo dos anjos. Afinal, o saber de experiência feito valia apenas para alguns.
Mestre António, o sábio judeu que ajudou Martim é o símbolo do desprezo a que foram votados todos os que tinham mérito mas não condição. Ser nobre, ser fidalgo, mesmo ignorante, era a única hipótese de sucesso para Martim; de nada lhe valia querer ser santo ou sábio.
Depois de momentos hilariantes, em que a escrita de P. Canais revela uma riqueza extraordinária, a parte final da obra encaminha-se para o regresso ao início: os amores de Martim; a paixão que o levou de Granada aos quatro cantos do mundo haveria de regressar na parte final da sua vida. E depois de mil peripécias, a grande lição que o nosso herói tirou de oitenta e tal anos de andanças pelo mundo: afinal, todos os homens são naturalmente iguais. No entanto, passam a vida à procura de motivos para se guerrear; à procura de diferenças e superioridade para com elas justificar a guerra. E a religião é um dos campos prediletos onde os homens procuram essas diferenças, meio caminho andado para a justificação do poder sobre os outros homens. “Tenho por certo é que na própria merda, em bem buscando, hão-de encontrar os homens causa de grande veneração”.
Enfim, um livro admirável que só por motivos obscuros não obteve o êxito retumbante que merecia.

segunda-feira, 30 de dezembro de 2013

Diz que é uma espécie de balanço



57 livros lidos. Podia ser pior. Uma só deceção: balanço, portanto, muito positivo.
Que 2014 seja ainda melhor, para todos nós.
Entretanto, aqui fica a minha lista das melhores leituras de 2013 e uma grande deceção.

Clássicos intemporais
Épico - Os Miseráveis - Victor Hugo.
Corajoso - O Noventa e Três - Victor Hugo.
Poético - O Velho e o Mar – Ernest Hemingway.
Fantástico (em todos os sentidos) - A Casa dos Espíritos - Isabel Allende.
Monumental - O Conde de Monte-Cristo - Alexandre Dumas.
Humaníssimo - Os Passos Perdidos - Alejo Carpentier.
Mágico – Os Pilares da Terra – Ken Follett.

Clássicos portugueses
(para além de várias obras de José Saramago, de que dei conta aqui)
Obra-prima -Alexandra Alpha - José Cardoso Pires.
Hilariante - Crónica dos Bons Malandros - Mário Zambujal.
Inteligente - O Riso de Deus - António Alçada Baptista.
Histórico – E se for rapariga chama-se Custódia – Luís de Stau Monteiro.

Surpresas
Irónico - O Complexo de Portnoy – Philip Roth.
Verdadeiro – Palavras em tempos de crise – Luís Sepúlveda.
Nós – A Lenda de Martim Regos – Pedro Canais.
Surpreendente – Do outro lado do rio, há uma margem – Pedro de Sá.
Belíssimo - Quem me dera ser onda - Manuel Rui.

Deceções
Quo vadis, Miguel? – Como é linda a puta da vida – Miguel Esteves Cardoso.


Os seis livros do meu TOP 5 :) :

sábado, 21 de dezembro de 2013

Palavras em tempos de crise - Luis Sepúlveda


Sinopse:
Um grito de revolta contra os tempos conturbados que vivemos.
A escrita, o compromisso político, as amizades, o exílio e as viagens são elementos indissociáveis numa vida fascinante como a de Luis Sepúlveda.
Nestas páginas, entrelaçam-se histórias pessoais, histórias dos trabalhadores e suas lutas, gritos de dor perante a exploração criminosa do meio ambiente, reflexões pungentes sobre a crise económica que atingiu a Europa e encenações de momentos partilhados com amigos, entre eles Pablo Neruda, José Saramago e Tonino Guerra. E emerge, acima de tudo, o Luis Sepúlveda homem: as lembranças do difícil passado no Chile, o destino dos seus companheiros dispersos no exílio e o seu reencontro numa pequena baía do Pacífico, uma viagem pelo deserto de Atacama, mas também alguns vislumbres da vida pessoal, as memórias de um fiel amigo de quatro patas, a alegria de se sentar a uma mesa de refeições com a família alargada e receber o epíteto de «velho». E, sobretudo, a certeza de ter vivido «uma vida de formidáveis paixões».
Comentário:
Há pessoas cuja passagem pela vida deixa marcas profundas e indeléveis. Uma dessas pessoas é Luís Sepúlveda. O desassossego deste homem, a inquietação perante a infelicidade dos outros e a injustiça fazem dele um ser humano magnífico, que sempre soube utilizar o seu imenso talento literário para defender os esquecidos e os injustiçados.
Foi assim durante a ditadura de Pinochet, esse assassino amigo de Salazar que deixou o Chile marcado pelo sangue de milhares de resistentes, fieis a esse outro mito da resistência, Salvador Allende, também ele assassinado por Pinochet.
Este livro é uma pequena coleção de textos ou crónicas que têm como denominador comum a palavra crise. A crise atual é vista por Sepúlveda de uma forma crítica e bem informada mas, acima de tudo, numa abordagem humanista. É o caso da sua descrição da luta dos mineiros asturianos (Sepúlveda vive nas Astúrias), uma luta nascida da injustiça, da exploração do trabalho honesto pro parte dessa minoria de 1% da humanidade que detém 99% da riqueza. Ora essa riqueza é produzida pela maioria e quem dela usufrui é essa minoria privilegiada e exploradora. Pior ainda, quando os rendimentos diminuem é ainda a essa minoria que se vai buscar mais riqueza, espremendo, esmagando por completo aqueles que produzem.
O esmagamento dos salários, não e, como dizem, destinado a obter uma competitividade maior, em nome do acesso aos mercados; é, isso sim, uma forma de obter lucros cada vez maiores e a crise, construída por alguns, é um pretexto para esse esmagamento.
Muitos dos que falam da crise, muitos iluminados que continuam a apoiar as estratégias egoístas dos agentes políticos do neoliberalismo, deveriam ler este livro. Poucas vezes se demonstrou de forma tão clara que a crise convém a determinadas pessoas, os donos da economia mundial. O seu poder e a sua riqueza fundam-se sobre a miséria da maioria. Mas esta, tantas vezes cega, deixa-se conduzir rumo à exploração total.
Esta realidade dramática, tantas vezes ocultada pelos poderosos e alimentada pela cegueira voluntária de milhões, deixa, no entanto, muito espaço livre neste livro para que o autor nos delicie com episódios deliciosos de momentos passados com grandes nomes da Literatura, como José Saramago, Pablo Neruda, etc.
Mas o que fica deste livro é a ideia de que as palavras de Sepúlveda não são só as palavras da arte de bem escrever; são, acima de tudo, as palavras da resistência e da luta por um mundo mais justo; são as palavras de Allende, de Neruda, de Saramago.

sábado, 14 de dezembro de 2013

Arroz de Palma - Francisco Azevedo


Sinopse:
O Arroz de Palma fala de família. Considerada falida nos anos 60 e condenada ao desaparecimento, a família situa-se, agora, neste início do século XXI, como a mais sólida das instituições. Surpreendente? Nem tanto. Embora sacudida por radicais transformações de comportamento, ao longo das últimas quatro décadas, a família tem sabido superar suas deficiências, passar por testes dificílimos e, com base em diálogo mais franco, obter um maior entendimento entre seus membros: a aceitação do sexo antes do casamento e da homossexualidade, a união entre pessoas de religiões, raças e níveis sociais diferentes, a possível amizade entre casais que se separam e a natural convivência entre filhos de casamentos diferentes são apenas alguns exemplos de como essa instituição tem sabido evoluir e responder a novos desafios.
Embora ainda com resistências e intolerâncias aqui e ali, e apesar de aparentes sinais de fragilidade, a família apresenta-se hoje como a instituição mais credenciada para reger de forma responsável as mudanças que a sociedade vem exigindo. Em O Arroz de Palma todos esses temas e mudanças estão presentes. Antonio, o narrador da história, é naturalmente envolvido por elas. A história pretende mostrar que, apesar de todos os seus erros e tropeços cotidianos, a família busca se aprimorar. Ao se empenhar pelo acerto, essa milenar instituição parece querer provar que nós, seres humanos, pelo próprio instinto de sobrevivência, estamos fadados ao entendimento.

Comentário:
O clube de leitores Bertrand de Braga ofereceu-me esta possibilidade de ler pela primeira vez este escritor brasileiro. Não posso dizer que seja uma obra-prima nem que a escrita de Francisco Azevedo seja genial. Mas é muito agradável. Talvez pelo facto de ter feito carreira como guionista, Azevedo presenteia-nos com uma escrita fluida, muito musical, sem ornamentos desnecessários mas também sem cair na aridez da escrita do tipo SMS.
Grande parte da musicalidade e de um certo exotismo nesta forma de escrita advém do respeito quase total pela linguagem falada e pelo sotaque brasileiro; lemos como ouvimos.
A estrutura narrativa é interessante, se bem que demasiado linear: trata-se dos cem anos de história de uma família brasileira resultante de um casal pobre português, de Viana do Castelo.
O contexto da aventura iniciada por esse casal apresenta-nos um retrato muito fiel e historicamente correto do Portugal dos últimos tempos da monarquia (1908) em que a fome se generalizara, em consequência de uma política monárquica decadente, corrupta e antiquada. Passava-se fome em Portugal e o Brasil era uma espécie de terra prometida.
No Brasil, como acontecia com a generalidade dos emigrantes, também o casal José Custódio e Maria Romana, bem como a Tia Palma, destacaram-se pela humildade e capacidade de trabalho que os levou a um estatuto socioeconómico bem distante da miséria portuguesa.
Mas é da geração seguinte que aqui mais se fala; o narrador é um dos filhos do casal, Antonio, o mais velho dos quatro filhos de José e Maria (curiosa escolha de nomes) um apaixonado por culinária que se torna um empresário bem-sucedido.
Mas o fio condutor do livro é o misterioso arroz da Tia Palma, o mesmo que fora atirado sobre o casal aquando do casamento, em Viana do Castelo, 1908. O caráter mágico do arroz, experimentado ao longo de um século por toda a família confere à obra um tom tipicamente sul-americano de realismo mágico. No entanto, o enredo, a partir de determinada altura perde ritmo e a estória torna-se algo previsível. Os milagres do arroz de Palma quase se tornam triviais, tal a sua eficácia e os contextos pouco variáveis em que ocorriam.
Mesmo assim, estamos perante uma leitura agradável de um escritor que vale a pena conhecer.


quarta-feira, 11 de dezembro de 2013

Nadir Afonso, Mestre da Beleza

Faleceu hoje...
A maior pobreza de um povo não advém da crise, ou dos mercados, ou do sistema financeiro.
Advém da morte da beleza.
(A Cidade Incerta, 2010)

domingo, 8 de dezembro de 2013

Do Outro Lado do Rio, Há Uma Margem - Pedro de Sá


Sinopse:
Uma rapariga pedala na fúria do momento, sempre a pior, numa tarde ensolarada de Maio. Um casal revisita lugares de outrora. Uma mão desce sobre uma laje. A sombra de um choupo. Um rapaz caminha sobre a terra sob o peso de uma questão. Uma velha descasca peças de fruta antes de falar. Uma mulher olha um filho como se caminhasse sobre uma plataforma ferroviária. Uma bengala, de madeira, em silêncios de adeus. O mundo, lá fora, já uma noite imensa. Enquanto sorrisos sob uma luz.

Comentário:
Pedro de Sá tem vindo a construir um percurso curioso na nova literatura portuguesa; um percurso discreto, feito de passos suaves e seguros, desde o prometedor Olhei Para Trás e Sorri, de 2010, até este quase maduro romance.
Na verdade penso que estamos perante um dos mais prometedores escritores da nova vaga. Um escritor que caminha a passos largos para a maturidade. A minha maior dúvida é esta: será que o seu merecido reconhecimento público será possível nesta editora?
Este romance, que se lê quase de um fôlego tal a cadência da sua escrita, revela traços de originalidade notáveis mas também (e acima de tudo) de uma qualidade literária que deriva, em grande parte, de uma interioridade exposta em palavras e frases sentidas, transparentes no sentimento e na leitura da alma humana.
Em primeiro lugar, destaca-se ao longo da leitura uma curiosa abordagem bucólica dos cenários, que leva o leitor a viajar até aos mais puros escritores românticos da literatura portuguesa; tais cenários funcionam como pano de fundo àquilo que mais me impressionou neste romance: uma abordagem singular da alma humana. É que por vezes há olhares distanciados na vida que, afinal, nos escondem o óbvio que vem das almas:
Perdemo-nos tanto a olhar o longe que não ouvimos a súplica perto.” (Pág. 53)
 Pedro de Sá, neste livro fala-nos das súplicas que vêm das almas. A sua escrita caminha sobre sombras introspetivas, deixando um rasto de António Lobo Antunes. Talvez, como aconteceu com os seus personagens, o autor tenha enveredado por esse caminhar para o interior, para dentro de si ou para dentro de uma certa alma universal. Afinal de contas, o que lemos em Henrique, Andreia ou Eduarda são imagens, retratos interiores, divagações das profundezas da alma, diálogos de cada um deles com eles mesmos e os outros como espelhos ou contrapontos às vezes, como obstáculos ou desafios outras vezes.
Mas nestas almas, mesmo que mundos transformados em ilhas, há sempre pontes que se constroem; há vias de acesso a margens separadas, a espaços de paz atravessados por torrentes caudalosas que, no entanto, a luta a que chamamos vida permite vencer.
É também do equilíbrio tantas vezes precário dessas pontes que Pedro de Sá nos fala. E a angústia dessa instabilidade, a fronteira do medo que vai transmitindo a quem lê uma perspetiva de desequilíbrio, de precaridade, que avassala todas essas (e estas) almas: de quem lê, de quem escreve e de quem é inventado. Talvez pela ordem inversa…
E o tempo, esse monstro; esse rio caudaloso, intempestivo, que separa margens.

À sua volta, sentem o amanhã. Regina apenas o presente. Afinal, a dor ensina-nos o momento. E ela ficou, para sempre, enredada numa margem a olhar a corrente” (Pág. 120)… a espera da vida; a luta contra e a favor do tempo; a procura incessante de uma margem sonhada, feita de paz mas separada pelo tempo de uma outra margem, a do sofrimento. Ou talvez as duas sejam uma e a mesma margem…

quarta-feira, 4 de dezembro de 2013

A Irmandade do Santo Sudário - Julia Navarro


Sinopse
Obras sobre Templários e segredos religiosos têm-se transformado em best-sellers nos últimos meses, sendo o caso mais evidente o sucesso estrondoso de «O Código da Vinci». «A Irmandade do Santo Sudário», da jornalista espanhola Júlia Navarro, vem confirmar essa apetência do público.
A acção do livro decorre em Turim, quando um incêndio assola a catedral da cidade italiana onde se venera esta controversa relíquia.
Este incêndio e a morte de um homem a quem tinham cortado a língua são o detonador de uma empolgante investigação policial do «Departamento de Arte» dirigido pelo detective Marco Valoni e pela perspicaz e atraente historiadora Sofia Galloni.
Alternando capítulos no presente com capítulos de um teor mais histórico (Império Bizantino, a França de Filipe o Belo, Portugal, Espanha, entre outros.), Julia Navarro constrói uma trama que vai dos Templários aos nossos dias.
Os protagonistas são homens de negócios cultos e refinados, cardeais e outras importantes figuras da Igreja, ou seja, uma elite cujo único elemento comum é serem solteiros, ricos e muito, muito poderosos.
(in Wook.pt)
Comentário:
Já por várias vezes deixei aqui o meu apreço pela literatura espanhola. Escritores como Zafón, Perez-Reverte, Mendoza, Vila-Matas, etc. têm o condão de agarrar o leitor, os primeiros com uma escrita mais objetiva em narrativas lineares, os segundos com enredos mais reflexivos.
Esta escritora, Júlia Navarro, pertence ao grupo dos primeiros: com um estilo objetivo, quase jornalístico, ela vai-nos contando uma história fascinante, mau grado os clichés que constituem o tema do romance: as intrigas em torno do Santo Sudário e a história misteriosa dos Cavaleiros Templários.
O romance é construído em dois tempos: numa perspetiva diacrónica, vai sendo exposto o percurso do sudário, desde a sua origem na morte de Jesus Cristo, até ao seu destino misterioso. Por outro lado, numa abordagem de tipo policial, vai-se contando a história da investigação de misteriosos incêndios na catedral de Turim que levam os investigadores e especialistas a tentar desmontar as intrigas que se tecem em torno do misterioso linho.
Paulatinamente, o leitor vai-se apercebendo de como determinados interesses pessoais e de grupos podem tornar-se perigosos e assumir contornos verdadeiramente assustadores. Na verdade, a ambição humana pode atingir limites incalculáveis, de permeio com convicções religiosas assustadoramente radicais.
É curioso como dois temas tão explorados pela literatura, o sudário e os Templários, ainda são terreno fértil para bons livros como este.
É certo que a história é, por vezes, demasiado linear e demasiado presa a certos lugares comuns; mas também não deixa de ser verdade que é graças a livros como este que a literatura de ficção cumpre os seus mais nobres objetivos: a promoção da leitura na sua componente lúdica e a divulgação do saber. Sim, porque pelo meio da ficção, este livro não deixa de nos enriquecer em termos de conhecimento histórico.

Enfim, no bom estilo de “nustros hermanos”, estamos perante um livro divertido, agradável e, acima de tudo, cheio de conteúdo.

domingo, 24 de novembro de 2013

Os Pilares da Terra - Ken Follett


Quando li os dois primeiros livros da trilogia O Século, deste autor, fiquei um pouco decepcionado. Não que a obra tenha pouca qualidade, nada disso. Simplesmente esperava ainda mais. Fiquei nessa altura com a sensação que Follett tinha pretendido fazer uma espécie de Guerra e Paz do século XX, ficando muito preso a esse modelo e, por outro lado, prendendo-se demasiado à verdade histórica e mesmo assim falhando em alguns aspetos.
Nada disso acontece em Os Pilares da Terra.
Aqui aconteceu magia. Aconteceu uma verdade histórica refinadamente retratada e uma criatividade fantástica, num ritmo narrativo alucinante.
Ler estas 1100 páginas foi uma aventura demasiado breve. O leitor é embalado neste ritmo narrativo e, de repente, está no fim do livro.
Antes de mais, uma nota muito positiva para a forma tão verossímil como o autor nos descreve as misérias daqueles tempos (século XII); de como essas misérias, geradoras de uma tremenda violência, eram causadas por profundas desigualdades sociais.
No meio de um ambiente de miséria e injustiça, levantam-se os mosteiros como uma espécie de oásis na desgraça. Os monges beneditinos são, aqui, testemunho do interesse do autor pela história da igreja, mostrando-nos o clero regular como um local onde resta a mais pura bondade e humanidade mas também um microcosmos de todas as misérias do mundo.
No entanto, é nesse microcosmos que se erguerá o símbolo maior da força da humanidade: a pedra que testemunhará o sacrifício, o sofrimento, mas também a coragem e a força do ser humano: a catedral; a maior catedral do mundo.
O cenário político da obra situa-se a partir do final do conturbado reinado de Henrique I de Inglaterra. A sua morte, precedida de conturbados acontecimentos de rebeliões e traições, mergulhou a Inglaterra numa autêntica guerra civil, um período de caos que beneficiou os grande senhores da aristocracia da terra, mergulhando a população servil numa miséria e violência que servem de pano de fundo à odisseia dos personagens desta obra.
O clero assume, na narrativa de Follett, um papel bastante ambivalente; se os monges são o último reduto da caridade e da bondade, não é menos verdade que a igreja se deixa mergulhar no oportunismo, na cobiça dos bens materiais e, pior que isso, nas mais soezes maquinações da guerra política, no acesso às benesses do poder.
O herói do livro, o monge Philip, é uma espécie de síntese entre o humanismo e a necessidade de acompanhar as maquinações politicas. É genial a forma como Follett expõe o processo que levou Philip, um monge honesto, a aceitar negociatas mais ou menos obscuras para se tornar prior e levar a cabo os seus sonhos.
Ao longo do livro deparamos com uma espécie de psicanálise da mente criminosa: de como as injustiças sociais e as condições económicas (miséria material) conduzem ao crime.
Por um lado retrata-se uma Idade Média que nos arrepia pela violência, pela devastação e pela crueldade humana; mas, por outro lado, é nesta Idade Média que encontramos todo a força que o ser humano pode demonstrar, todo o poder de se reerguer, de triunfar mesmo por entre as mais catastróficas adversidades. É entre o sangue e o sofrimento de todo um povo que se erguem, imponentes, as torres e as naves das catedrais.
O enredo deste livro testemunha-nos o triunfo do gótico, esse estilo triunfal que marcou a baixa idade média; Saint-Dennis, essa magnifica catedral parisiense construída pelo célebre abade Suger serviu de modelo para a Notre Damme mas também para a catedral de Kingsbridge que o nosso herói vai construindo.
Uma religiosidade extrema, por vezes totalmente irracional, em que o diabo tem tanto poder como Deus dá o contexto para um mundo em que os homens se assumem como deuses ou demónios. Talvez nessa ambivalência do ser humano resida um dos motivos deste misterioso encanto que a Idade Média desperta em nós.
Não me permito falar do final do livro, para proteger o interesse de futuros leitores deste livro; no entanto não resisto a dizer que é um final grandioso, triunfal e espetacular. Mas também profundamente simbólico: o triunfo do povo. E do espírito sobre a pedra.

Imagem daqui:

(elenco e cenário da série televisiva britânica)

quarta-feira, 6 de novembro de 2013

Como é linda a puta da vida - Miguel Esteves Cardoso


Comentário:
Decidi empreender a leitura deste livro por duas razões essenciais: porque não lia MEC há mais de vinte anos e porque tinha gostado muito dos dois livros que li nessa época: O Amor é Fodido e, principalmente, um livro que continuo a considerar genial, A Causa das Coisas. As expetativas eram, portanto, muito grandes e quando assim é o risco de deceção é muito maior. Infelizmente foi o que aconteceu e, indo direto ao assunto, fiquei dececionado.
Nesta obra, constituída por crónicas jornalísticas, encontramos um Miguel Esteves Cardoso muito mais sereno, mais adaptado ao mundo e, talvez, mais feliz, tendo em conta o período negro que passou na sua vida pessoal, com a doença da esposa, Maria João.
Mas o leitor, no seu egoísmo de cliente de um produto cultural mas também de diversão, não queria um MEC acomodado e sereno. Queria o “velho” MEC contestatário, crítico, mordaz. Aquele que com Paulo Portos (este ainda mais transformado nos dias que correm) dirigia um jornal cheio de humor e crítica, O Independente.
Neste livro damos conta que esse velho MEC já não existe. A qualidade da sua escrita continua lá, com um estilo direto, sintético, claro. Mas apenas encontramos amostras dispersas daquilo que mais o distinguiu como escritor e jornalista: a crítica.
Quando, mais ou menos a meio do livro, vemos MEC confessar que ama este país, chega a confirmação: este não é o mesmo MEC.
Mesmo assim, o livro vale por outra característica típica deste excelente ser humano que é Miguel Esteves Cardoso: pela transparência com que nos expõe os seus sentimentos e emoções; não há dúvida que a sua escrita continua a ser transparente, honesta e frontal. Mas aquele sentido de humor requintado, cheio de crítica, tornou-se agora mais raro e só em alguns capítulos, como naquele episódio hilariante em que nos presenteia com um comentário à cozinha francesa. O uso do palavrão, no título mas também em alguns capítulos, continua a ser uma técnica bem explorada por MEC: usado com a propósito, conferindo um tom de humor à escrita.
No entanto, no final da leitura, damos conta que o próprio título do livro esconde uma outra deceção: não corresponde ao conteúdo e só se explica como forma de o fazer notar nas prateleiras dos hipermercados, junto dos livros da SIC.
Em suma: não é um mau livro, mas está longe desse clássico que é A Causa das Coisas. Talvez a experiência da vida e a paixão notável pela Maria João tenham tornado MEC um homem mais feliz. Valha-nos isso, porque ele merece.


sábado, 2 de novembro de 2013

A Feira dos Assombrados - José Eduardo Agualusa


Sinopse
Publicada pela primeira vez em 1992, A Feira Dos Assombrados, tem como cenário a velha cidade do Dondo, às margens do Rio Quanza, em Angola, nos últimos dias do século XIX. Tudo começa com a descoberta de um misterioso cadáver: O primeiro corpo que o rio trouxe ainda nos pareceu humano. Tinha as partes todas de que somos compostos, a pele lisa e sem escamas, como a nossa, e os enormes olhos abertos guardavam até um resto de luz e de calor. A partir desta descoberta, o Dondo, lugar inteiramente apartado do mundo, vai mergulhar num estranho pesadelo. Uma alegoria sobre a presente situação política e social de Angola.

Comentário
É uma limitação minha, reconheço, a pouca apetência para ler e gostar de contos. Talvez por esse motivo, esta foi a obra de Agualusa que menos me entusiasmou.
Estas estórias parecem-me algo insipidas quando comparadas com os livros de maior folego deste grande escritor angolano. Seja como for, não deixam de marcar presença os mais significativos traços da sua escrita: a fantasia, a ingenuidade do falar do povo, a poesia da linguagem falada, naquela mescla sui generis do português com a voz da terra africana. Por exemplo: (o boato) “ faz acontecer; dá acontecência ao insucedido.” Repare-se na forma simples, sintética, como se alia a musicalidade da língua à verdade ingénua e, ao mesmo tempo, profunda da sabedoria popular.
No conto principal, que dá título ao livro, Agualusa faz entrar em cena a sua paixão pela história de Angola, nomeadamente pelo período final do século XIX. Aí se cimentou a presença portuguesa na ocupação da terra angolana. E é de uma forma crua, quase brutal que Agualusa nos transmite a imagem do colonizador:
Os ratos não tardaram a fugir, transferindo-se para o norte com as suas veneradas doenças de ofício, as suas balanças viciadas, as suas quinquilharias baratas, o seu vinho triste, os seus ferros de educar gentio. E por ratos quero dizer os comerciantes portugueses, quase todos antigos degredados, a medrosa cáfila de pequenos artífices e as inevitáveis putas, ávidas aves que vêm e que voam…” É a tristeza nua e crua da verdade histórica, de uma nação brutalmente colonizada e espoliada.
Nesse conto, o mais extenso, na típica mescla de fantasia e realismo que carateriza este autor, dá-se conta do aparecimento de uma série de misteriosos cadáveres, trazidos por um rio, o Quanza. Simbolicamente, o primeiro cadáver surge no dia 31 de janeiro, o dia em que a monarquia portuguesa foi pela primeira vez abalada. Sobreviveu, no entanto, como sobreviveria a miséria moral do colonizador, assim como a terra sedenta de liberdade.
Na verdade, este conto destaca-se dos restantes não só pela sua extensão mas principalmente pelo simbolismo do seu conteúdo; os cadáveres trazidos pelo rio são as oferendas negras de uma realidade externa que fez Angola mergulhar no terror, no medo, na tristeza.

Mau grado toda a poesia desta escrita e todo este simbolismo, o leitor fica algo dececionado; de Agualusa espera-se sempre um pouco mais.