sexta-feira, 28 de fevereiro de 2014

O Confessor - Daniel Silva



Sinopse:
Autor revelação, é considerado como um sucessor de Graham Greene e John Le Carré. Em sete anos, Daniel Silva escreveu sete best-sellers que alcançaram o top do New York Times. O autor, de nacionalidade americana, é filho adotivo de pais açorianos e o avô, que nasceu nos Açores, era pescador.
"O Confessor" é o terceiro volume de uma “trilogia acidental abordando o tema inesgotável do Holocausto”. O silêncio do Papa Pio XII perante o apelo dos Judeus no regime de Hitler, a publicação em 1998 de “Nós lembramo-nos”, a muito esperada declaração do Vaticano sobre o Holocausto, e os arquivos secretos do Vaticano estiveram na origem deste livro.
Daniel Silva escolheu tratar o Vaticano como uma instituição política e sublinhar a dimensão política das personagens. Para além de todo o material histórico escrito que consultou, entrevistou diplomatas, antigos padres e jornalistas que fizeram reportagens sobre o Vaticano e foram presos.
"O Confessor" (525 mil exemplares vendidos nos Estados Unidos) é parte de uma trilogia protagonizada por Gabriel Allon, um talentoso restaurador de obras de arte e agente relutante dos Serviços Secretos de Israel.
Em Veneza, o restaurador é um mistério para os colegas de trabalho, um homem ácido e solitário que passa longas horas a ressuscitar Madonnas danificadas num andaime coberto por uma mortalha. No meio, é considerado um artista, um herdeiro dos grandes mestres. A dedicação quase obsessiva às pinturas que tem entre mãos alimenta especulações sobre a sua identidade, a necessidade de se redimir e de corrigir falhas que o tempo não mitigou.
Em Munique, Benjamin Stern, antigo companheiro de armas de Gabriel, é brutalmente assassinado. O reputado professor judeu empenhara-se num projeto secreto de investigação sobre a posição da Igreja Católica no Holocausto.
Gabriel Allon e o seu chefe personificam encruzilhadas da História do Médio Oriente e da Europa do século XX: a memória do Holocausto, o conflito israelo-árabe.
Comentário:
Ao contrário do que se possa pensar, Daniel Silva não é português; é norte-americano nascido no Michigan, filho adotivo de portugueses. Teve uma educação católica mas converteu-se posteriormente ao judaísmo, o que ajuda a compreender algumas das caraterísticas das suas obras.
Este escritor é um caso sério. As suas obras não têm a dimensão de obras-primas mas primam por algo muitas vezes esquecido mas que continua a ser fundamental: propiciar o prazer de ler.
O estilo de Daniel Silva é, acima de tudo, muito atraente; as frases curtas, a linguagem “cinematográfica”, a clareza do enredo, fazem com que a sua escrita seja acessível a todos os tipos de leitores, bem enquadrado no leitor típico norte-americano, sempre mais interessado numa estória emocionante do que em grandes reflexões. Mas nem por isso esta obra deixa de ter motivos para fazer refletir o leitor.
Este livro não escapa àquilo que entrou na moda na fase pós - Dan Brown: a ficção em torno do Vaticano, dos seus escândalos e das suas polémicas. Ao ler este Confessor várias vezes nos vem à memória Anjos e Demónios ou o Código Da Vinci. Numa escrita simples mas não simplista, Daniel Silva presenteia-nos com um enredo muito interessante, com um ritmo narrativo por vezes impressionante. Por outro lado é notável a informação histórica que o autor recolheu e o rigor que colocou na abordagem desses assuntos.
Neste livro, mais do que as polémicas do Vaticano, é com imensa coragem que Daniel Silva mexe com uma das polémicas mais fortes do Vaticano e, mais do que isso, uma página absolutamente negra da igreja católica: a forma como pactuou e até colaborou diretamente com as tropas e autoridades nazis no que respeita ao holocausto. À falta de coragem do papa Pio XII juntou-se a imensa teia de interesses que teimou em colaborar com Hitler na chacina de tantos milhões de judeus.
Por outro lado, a crítica à igreja atual estende-se às relações muito perigosas entre os meios religioso, político e financeiro. O Vaticano parece ser um palco que esconde bastidores que pouco ou nada tem a ver com a natureza do cristianismo primitivo.

terça-feira, 25 de fevereiro de 2014

Mar Me Quer - Mia Couto



EXCERTO:
Um dia o padre Nunes me falou de Luarmina, seus brumosos passados. O pai era um grego, um desses pescadores que arrumou rede em costas de Moçambique, do lado de lá da baía de S. Vicente. Já se antigamentara há muito. A mãe morreu pouco tempo depois. Dizem que de desgosto. Não devido da viuvez, mas por causa da beleza da filha. Ao que parece, Luarmina endoidava os homens graúdos que abutreavam em redor da casa. A senhora maldizia a perfeição de sua filha. Diz-se que, enlouquecida, certa noite intentou de golpear o rosto de Luarmina. Só para a esfeiar e, assim, afastar os candidatos.
Depois da morte da mãe, enviaram Luarmina para o lado de cá, para ela se amoldar na Missão, entregue a reza e crucifixo. Havia que arrumar a moça por fora, engomála por dentro. E foi assim que ela se dedicou a linhas, agulhas e dedais. Até se transferir para sua atual moradia, nos arredores de minha existência.

Comentário:
Antes de mais, como sempre, a magia da mistura do português com o falar de Moçambique; como se vê no excerto acima, esta escrita tem um impressionante componente musical. O leitor é desde logo embalado por este falar.
Neste pequeno livro (em boa hora incluído no Plano Nacional de Leitura) está bem patente toda a qualidade literária deste grande escritor, bem como toda a dimensão simbólica que a sua escrita encerra. Mar Me Quer, título sugestivo é muito mais do que um trocadilho bem-sucedido; é a expressão de uma analogia que Mia Couto desenvolve noutras obras entre o Mar e o devir, a expressão do tempo, por oposição à terra, onde radicam as raízes daquilo que é o verdadeiro tema de fundo de todas as suas obras: o povo moçambicano.
Agualberto Salvo-Erro, o pai do protagonista personifica essa ligação da água a tudo o que é externo; Agualberto viveu e morreu em desgraça porque pactuou com os estrangeiros, por oposição ao avô Celestino, o homem com o coração da terra.
Zeca, o protagonista, herdou os dois lados; ele prefere apenas viver, ao sabor do tempo, ou seja, fazer o que resta ao povo moçambicano: sobreviver. Ao mesmo tempo, revela-se a face mais visível do imenso iceberg que é a escrita simbólica de Mia Couto: esse lado emerso do livro é a história de amor de Zeca Perpétuo pela sua gorda vizinha, a enigmática Luarmina.
Luarmina é mulata; é a síntese das culturas em conflito histórico; ela é também a explicação final do destino do pai de Zeca, num final apoteótico e surpreendente.

Trata-se de uma bela estória, mais uma das muitas que Mia Couto tem escrito. O poeta Miguel Almeida disse algures que ler Mia Couto lhe dá uma vontade enorme de escrever poesia; acho que isso testemunha bem a beleza quase mágica das palavras de Mia Couto, um escritor que tem levado bem longe a língua portuguesa.

quinta-feira, 20 de fevereiro de 2014

La Coca - José Rentes de Carvalho




Sinopse:
Manuel Galeano - que sempre tivera "o contrabando no sangue" - sumiu antes do segundo encontro. Inesperadamente, como cruzara o caminho do seu velho conhecido em Amesterdão. O primeiro encontro, seguido de uma conversa saborosa no bar de um hotel, cheia de memórias de juventude e de algumas confidências do presente, é o ponto de partida para uma longa evocação e uma viagem sentimental: da história do tráfico entre o Minho e a Galiza - tráfico de cigarros, uísque, barras de ouro, gado e café e mais recentemente de narcóticos - e os seus protagonistas - Diogo Romano, El Min, Sito Miñano, o Pardal, o Pepe, Mustafé e o Laurestim-, que durante décadas enformaram o imaginário pícaro local; e a viagem de revisitação que o autor deste livro faz aos lugares da infância e da primeira idade adulta.
La Coca é também uma investigação literária - que se materializa neste livro - e um pequeno tratado dos mecanismos da memória.
Um romance breve, profundamente irónico e terno. E a escrita clara, brilhante, de Rentes de Carvalho.

Comentário:
Confesso que nunca tinha tido conhecimento da obra deste escritor; o meu interesse foi despertado por um post no blogue http://queroumlivro.blogspot.pt e em boa hora segui a recomendação da sua autora, N. Martins.
Ler Rentes de Carvalho foi, para mim, uma das melhores surpresas dos últimos tempos.
Este livro consegue algo impensável para a maioria dos escritores de ficção: agarrar o leitor do princípio ao fim sem dispor de um narrativa minimamente recheada daquilo a que gosto de chamar estória. Quer dizer: aqui não há suspense, não há incerteza no desfecho; o que há é uma autêntica conversa com o leitor. O autor não conta uma estória mas acaba por contar centenas delas, como alguém que conhece a fundo aquele meio, ao mesmo tempo assustador e maravilhoso do contrabando. Desde o mais pequeno do contrabandista, que age à margem da lei para sobreviver, até ao autêntico “padrinho” que comanda verdadeiros cartéis, Rentes de Carvalho dá-nos a conhecer um mundo impensável para a maior parte de nós, o mundo da criminalidade na Galiza e Alto Minho.
Poucos como Rentes de Carvalho expressam tão bem esse sentimento vago e maravilhoso que é a nostalgia da memória: o bom e o mau, o agradável e o detestável, o heroico e o criminoso, todas estas aparentes antíteses não passam de faces das mesmas moedas, porque no coração dos homens raramente está a consciência do bem ou do mal: está uma forma de viver. A nostalgia do passado é evocada sem juízos de valor; apenas interessa a vida e os sentimentos de quem vive.
Ao longo da leitura várias vezes me vieram à mente imagens daqueles homens cuja experiência de vida fez deles grandes contadores de histórias; em Rentes de Carvalho a imaginação e a criatividade misturam-se com um palco de memórias e tudo isso é levado à escrita de uma forma fácil, fluida e muito agradável de ler.
Não é um livro do qual se possam fazer muitos comentários; é um livro simples, singelo, capaz de entreter quem lê. Aqui não há mensagens de fundo nem lições de moral: há uma narrativa cheia de valor antropológico, onde se visitam lugares e, acima de tudo, emoções de pessoas simples, de seres humanos a quem o destino encaminhou para múltiplos caminhos.

segunda-feira, 17 de fevereiro de 2014

Liberdade de Pátio - Mário de Carvalho




Sinopse:
Um homem é incumbido de transportar uma estranha caixa contendo uma cabeça. Um excelso professor vê-se condenado a passar o resto dos seus dias numa prisão deveras invulgar. A história por detrás da internacionalização de uma das maravilhas culinárias de Portugal. Quatro professores reformados que o destino uniu num jardim municipal decidem aliar as suas bibliotecas. Um frequentador assíduo do metro calha em faltar com a sua palavra, despertando a indignação de um dos funcionários. Um comandante da Marinha incapaz de aceitar um não. As memórias da iniciação sexual de um jovem, num tempo em que os tios tomavam a seu cargo essa tarefa. Sete contos. Sete histórias que representam a multiplicidade de registos na escrita inigualável de Mário de Carvalho.
In fnac.pt

Comentário:
É absolutamente incansável, ler Mário de Carvalho. A sensação que percorre o leitor ao deliciar-se com estas páginas de escrita singela mas cinzelada é quase de perturbação, pela magia que se pressente: uma magia que consiste em tornar delicioso o ato de ler. As palavras parece terem sido esculpidas, não escritas. Cinzeladas em talhe precioso, cuidado ao mínimo pormenor, escolhidas como quem colhe pepitas de ouro entre o cascalho.
E depois é aquela versatilidade, aquele escrever sobre tudo, aquela multiplicidade de tons, como se cada conto fosse um quadro impressionista, em que se deixa ao apreciador da obra de arte o prazer de recompor as cores, consoante a paleta da sua própria mente.
O primeiro destes contos dá o mote: a Cabeça de Mânlio não é uma estória; não nos conta uma narrativa, apenas um exercício literário brilhante, de raiz nitidamente surrealista. O desfecho deixa-nos perplexos mas encandeados com o brilho de uma escrita perfeita.
Depois vem o humor, muitas vezes absurdo. Sempre delicado, suave mas permanente. O sorriso vai-se fixando no rosto de quem lê, mesmo quando exposto à mais vil escravidão, como acontece com alguns dos personagens. Sim, porque é de escravidão que muitas vezes se fala neste livro, mesmo quando escondida por detrás de um biombo a que alguns chamam liberdade.
E mais adiante assoma à mente do leitor o maravilhoso léxico do autor – palavras escolhidas a rigor, bem vestidas, por vezes trajadas de gala. O leitor sente-se convidado para o festim das letras e pensa, atónito: onde vai este homem buscar palavras tão certas, tão direitinhas, mesmo quando expressam a desordem que há no mundo, ou seja, nas mentes de quem o faz?
E, acima de tudo, a crítica social e política: uma liberdade limitada, enganadora. Dada a conta-gotas, sob exigência de beija-mão. Ou seja, uma liberdade concedida em troca de algo. Vendida, portanto, mas com aparência de dádiva. Por isso, uma liberdade que implica submissão; logo, uma liberdade falsa como Judas. Uma liberdade restrita, pequenina, humilhante. É o nosso mundo; o mundo da cegueira de Saramago; a cegueira de quem não quer ver e, pior que tudo, a cegueira de quem aprecia a cegueira e ainda agradece beijando mãos a esmo.
E é neste mundo que nos afundamos felizes e contentes porque ainda há hipóteses de sermos ricos, como Fernando Faria que triunfa vendendo caldo verde em Londres e ameaça arrasar os mercados com a açorda de alho.

sexta-feira, 14 de fevereiro de 2014

O Preço do dinheiro - Ken Follett



Sinopse:
Um político acorda com uma bela mulher ao seu lado; um criminoso faz uma reunião com a sua equipa; um magnata toma o pequeno-almoço com um alto funcionário bancário. E depois três histórias nascem: uma tentativa de suicídio, um sequestro e uma oferta pública de aquisição. Parecem ações isoladas, sem relação umas com as outras, até que certo jornalista do Evening Post começa a fazer perguntas e a desvendar uma conspiração bem mais ampla que envolve todos estes elementos. Um dos mais aclamados livros de Ken Follet, cuja narrativa se desenrola ao longo de um dia num jornal vespertino de Londres e põe a nu com mestria as interligações entre o crime, a alta finança e o jornalismo.
(inWook.pt)

Comentário:
Se há autor que tem galgado posições no meu top pessoal de preferências, esse autor é Ken Follett.
O grande senhor de Os Pilares da Terra é, aos 65 anos, um dos mais versáteis dos grandes ficcionistas contemporâneos. Poucos como Follett exploram universos ficcionais tão distintos. Depois de ter descoberto o imenso manancial proporcionado pelo romance histórico, Follett parece ter fixado aí o seu foco. No entanto, ao longo da carreira navegou por vários outros universos. E foi por isso que empreendi esta leitura com grande expetativa, tendo em conta que se trata de uma da primeiras obras de Follett. Aliás, este livro foi publicado em 1977 sob um pseudónimo diferente: Zachary Stone.
O caráter pioneiro deste livro fica bem patente numa abordagem algo ingénua, de um tema muito explorado: a criminalidade da alta finança, por oposição a uma pequena criminalidade quase desculpável e mesmo apresentada com alguma simpatia.
No entanto, este livro, escrito por Follett aos 29 anos, denota já alguns nítidos traços de génio:
O primeiro desses aspetos é a visão bem nítida de uma comunicação social poderosa mas ao mesmo tempo sensível e exposta ao mundo da grande criminalidade. Fica claro que a Comunicação Social constitui um poder extraordinário na divulgação de factos e mesmo no desmascarar de criminosos mas, ao mesmo tempo, ela é o alvo prioritário dos grandes malfeitores; a grande criminalidade sabe que tem de controlar a comunicação social.
O segundo aspeto interessante desse jovem escritor de 1977 é a análise psicológica e sociológica da pequena criminalidade, organizada em grupos de criminosos que não passam de “peões” perante os grandes criminosos de colarinho branco.
Globalmente, é um livro que se lê com muito agrado, uma daquelas obras que nos faz passar uma insónia agradável mas que, mesmo assim, nos pode explicar algo sobre o lado negro do sistema capitalista liberal; está em causa o poder das grandes finanças mas também a falta de ética de alguns senhores da grande finança que não hesitam em recorrer aos meios mais criminosos para atingir os seus objetivos.
Uma nota de simpatia para esta coleção de livros de Bolso da Bertrand, que nos permite o acesso a excelentes obras literárias a preços bem simpáticos. É isto que faz falta em Portugal.

terça-feira, 11 de fevereiro de 2014

Tudo é e não é - Manuel Alegre




Sinopse:


«Estarei acordado, estarei a sonhar? Nunca mais conseguirei saber. Shakespeare sabia: "Somos feitos da mesma matéria de que são feitos os sonhos."»
António Valadares, escritor, vive submerso num sonho obsessivo e recorrente, de onde não há fuga possível. Numa derradeira tentativa de encontrar um sentido naquilo que não o tem, aventura-se a escrever sobre a sua vida onírica. Tem assim início uma viagem a um mundo repleto de situações ilógicas e incontroláveis, de intrigas e contradições; um mundo onde personagens reais e fictícias convivem e se fundem.
O que ele não prevê é que o seu empenho em narrar o inenarrável o aprisionará num caleidoscópio de sonhos e obsessões onde realidade e sonho, sonho e ficção já não se distinguem e o próprio espaço e tempo são subvertidos, desde a discussão com Lenine e Trotsky em plena revolução russa até às manifestações em Lisboa e à Mão Invisível que invade a vida e o sonho.

Comentário:

Para além de António Lobo Antunes, estou convencido que há em Portugal dois nomes enormes que não digo serem candidatos ao Nobel porque este prémio há muito está desvirtuado mas que são, com todo o mérito, expoentes máximos da nossa literatura. Refiro-me a Mário de Carvalho e a este sempre magistral Manuel Alegre.
Este é o seu último romance. Como sempre, contido nas palavras que não nas emoções; sintético no dizer, expansivo no deixar transbordar a alma. Alma de poeta, sem dúvida, alma de gente grande que soube enfrentar os tormentos do obscurantismo que avassalou Portugal noutros tempos. Mais uma vez, Alegre presenteia-nos com uma escrita magnífica.
No entanto, em termos de qualidade literária, este livro não traz nada de novo. Simplesmente porque a imensa obra literária de Alegre já não deixa margem para grandes novidades. Quem começar as leituras deste autor com este livro, poderá sem dúvida acha-lo excelente; no entanto, quem conhece a sua obra já não se deixa surpreender.
Mesmo assim, em termos de mensagem, esta obra traz algo de novo: traz-nos um Manuel Alegre mais introspetivo que nunca. Será o pensar no fim do caminho? Espero bem que não, mas há aqui algo de profundamente melancólico.
O acento tónico deste livro são os sonhos; mas não se trata aqui de um sonhar voltado para o futuro; trata-se de fantasmas revividos, de manchas do passado, de fragmentos de memória que assaltam o narrador. Sonhos, ficção e realidade: o sonho como uma espécie de ilha, ou de meio caminho, ou ainda de território híbrido entre a ficção e a realidade.
É nestes espaços duvidosos, lamacentos, de fronteira, que o narrador vive, procurando o amigo psicanalista como a única pessoa que o poderá ajudar a viver, interpretando os seus sonhos.
Se há desânimo neste livro não sei, deixo a palavra aos críticos literários. Amargura, angustia, isso sim. É um Manuel Alegre ainda à procura de um autocarro…
Finalizo o meu comentário dizendo que se há aspeto do carater de Manuel Alegre que se mantém poderoso é o seu espírito crítico; e nem os “deuses” da literatura lhe escapam:
Nunca Marx foi tão atual, os governos são conselhos de administração dos especuladores. Mas a literatura é dominada por pseudomarginais que são um poder oculto e mafioso, não é melhor que o da política e dos negócios, é mais hipócrita, domina as páginas literárias, distribui prémios aos compadres, é uma outra forma de censura e totalitarismo.”