quinta-feira, 6 de julho de 2017

A Rapariga que Inventou Um Sonho - Haruki Murakami


Comentário: 

Ler Murakami é sempre um desafio com retorno de satisfação garantida. Impossível não gostar destes contos cheios do mistério do quotidiano, numa mescla perfeita do misticismo oriental com o pragmatismo da literatura ocidental. É aí, nessa mistura perfeita que reside o segredo do sucesso deste mago das letras. Um gato preto que passa por uma cena sem ser para ali chamado, uma personagem que manifesta uma obsessão estranha, um disco que ninguém conhece, são elementos quase diáfanos, que passam discretos pela obra mas que lhe dão essa qualquer coisa de diferente, de quase mistério, esse clima estranho e encantador tão difícil de explicar…
“O mais assustador de tudo somos nós próprios”, diz Murakami na página 79, no conto “O Espelho”. Essa coisa da procura do sentido da vida que tanto povoou a literatura ocidental tem em Murakami um aspeto de procura da morte.  É um dos temas recorrentes nos seus livros e nesta obra manifesta-se num conto intitulado Tragédia Mineira em Nova Iorque. Este conto é bem a imagem deste livro: contos que são pensamentos, imagens mentais do escritor que muitas vezes são explanadas de uma forma muito pessoal e quase surrealista, como é o caso específico deste conto. A morte e a vida na sua ténue fronteira é também o tema abordado no conto A Faca da Morte. Numa linguagem poética, a morte é o centro do conto O Pirilampo; de como a morte povoa a vida.
Outros contos são terrivelmente cómicos, como O mergulhão, também algo surreal. Ou mais místicos, como OS Gatos Comedores de Homens: os felinos a contribuírem com o seu tom misterioso.
Na minha opinião, os contos mais bem conseguidos deste livro são “A História de uma Tia Pobre” e “O macaco de Shinagawa”. No primeiro destes contos, aborda-se com notável sensibilidade a relação entre consciência e ser: de como a consciência de algo faz nascer, é criadora. A partir do momento em que a sua mente concebe o enredo de um livro, ele deixa de ser ficção e é vivido a dois, pelo escritor e pelo leitor. Assim, a fronteira entre a fantasia e a realidade torna-se ténue. Um homem com uma tia às costas é uma farsa ou o mundo que o olha é que é essa farsa?
O livro termina com um belíssimo exercício literário, o Macaco de Shinagawa, uma narrativa cheia de humor e fantasia. Belíssimo. 

Sinopse (in wook.pt):

Em A Rapariga que Inventou Um Sonho, o autor do best-seller Kafka à Beira-Mar envolve a fantasia com a mais natural das realidades. Do surreal ao mundano, estas histórias exibem a sua habilidade de transformar o curso da experiência humana na mais pura e surpreendente arte literária.
Há corvos animados, macacos criminosos, um homem de gelo… Há sonhos que nos moldam e coisas que sempre sonhámos ter… Há reuniões em Itália, um exílio romântico na Grécia, umas férias no Havai… Há personagens que se confrontam com perdas dolorosas, outras que se deparam com distâncias inultrapassáveis entre os que querem estar o mais próximo possível.
Quase todas as histórias são melancólicas, com personagens submersas pela solidão. Murakami junta os seus temas favoritos: os acontecimentos inexplicáveis (o tal toque de fantástico que provoca por vezes a sua inclusão na corrente do realismo fantástico), as coincidências, o jazz, os pássaros e os gatos. Tal como foi escrito no Los Angeles Times Book

segunda-feira, 26 de junho de 2017

O Assalto - Daniel Silva


Comentário:
Quem disse que comercial é sinónimo de mau? Dostoievski ou o nosso Camilo escreveram para vender, para sobreviver. Daniel Silva não escreve para sobreviver mas escreve para vender o mais possível. No entanto, tem a sua qualidade. O livro absorve-nos a atenção, não permite distrações e, como tal, é só por si um magnífico passatempo. Tem todas as caraterísticas “boas” da escrita do género: linguagem simples e atrativa, pouca adjetivação, frases curtas, diálogos abundantes, capítulos pequenos, muita emoção no enredo. Tem também um bocadinho (só mesmo um bocadinho) do pior do género: o recurso a clichés. No entanto, este ponto e alguma previsibilidade do enredo são largamente compensadas por uma base pedagógica interessante.
Dessa base pedagógica há a salientar na primeira parte do livro uma interessante visita a Florença e outras cidades do renascimento italiano. Não há dúvida que Daniel Silva se preparou bem para escrever este livro, nomeadamente ao nível da pintura e da história da arte; fala-nos dos grandes pintores daquele período com grande à-vontade e num estilo sempre atrativo e dinâmico. Na segunda parte do livro o cenário muda radicalmente; chaga-se mesmo a um ponto em que parece que o foco inicial (o quadro desaparecido) deixa de estar em cena, tal é a facilidade com que o autor viaja para outras paragens, nomeadamente para o Médio Oriente. O presidente Sírio, nunca nomeado, é o alvo de toda a crítica e o autor aponta-o como líder de uma grande rede criminosa. No meio desta trama encontramos mais uma vez elementos pedagógicos interessantes e bem assentes no real conhecimento de causa.
Em suma, trata-se acima de tudo de um livro agradável, que não exige grande reflexão ou esforço de compreensão. Mesmo assim, salienta-se o aspeto pedagógico da obra. 

Sinopse: (IN WOOK.PT)

O lendário restaurador de arte e espião ocasional Gabriel Allon está em Veneza a restaurar um retábulo de Veronese quando recebe uma chamada urgente da polícia italiana. Julian Isherwood, o excêntrico negociante de arte londrino, deparou com o cenário de um homicídio brutal e agora é suspeito do crime. Para salvar o amigo, Gabriel tem não só de descobrir os verdadeiros assassinos, como também encontrar a mais famosa das obras de arte desaparecidas: a Natividade com São Francisco e São Lourenço, de Caravaggio.
A sua missão levará Allon de Paris e Londres aos submundos do crime em Marselha e na Córsega e, finalmente, a um pequeno banco privado na Áustria, onde um homem perigoso guarda a fortuna suja de um cruel ditador. Ao seu lado, o espião tem uma jovem corajosa que sobreviveu a um dos piores massacres do século XX e que tem agora a possibilidade de se vingar da dinastia que lhe destruiu a família.
Um livro elegante, sofisticado e de leitura compulsiva que deixará os fãs de Gabriel Allon cativados desde as primeiras páginas.

quarta-feira, 21 de junho de 2017

Um Dia na vida de Ivan Denisovich - Alexander Soljenítsin



Comentário:
“Solidão” é a palavra que ribomba na minha mente terminada esta leitura. Este livro de Soljenístin é uma espécie de evangelho da solidão. Ivan nunca está sozinho. No Gulag ( campo de trabalhos forçados) ele tem sempre os seus camaradas junto de si. Mas a proximidade física nada significa. Cada prisioneiro é uma ilha porque lhe cortaram a capacidade de sonhar, recordar e ter esperança. Tudo está morto na alma de Ivan; ele sabe que um dia a pena terminará (fora condenado a dez anos) mas não sabe se lá chegará; o que ele vê todos os dias é camaradas a tombar, exaustos, condenados em vida.
Por outro lado, as autoridades (o regime soviético do louco Estaline) assassinara o socialismo em nome do socialismo. A solidariedade era o âmago da teoria de Lenine, mas o truque usado pelo regime para obter a subjugação total dos seus súbditos é a morte da solidariedade; essa viria mais tarde a ser a arma quando Walesa fundou o “Solidariedade” em Gdansk. Mas o regime de Estaline sabia que era preciso cortar todos os laços entre os prisioneiros, como, se possível, entre todas as pessoas. Aqui, se um erra, todos são castigados. Este princípio não visa a criação de laços entre eles mas precisamente o contrário: que o verdadeiro culpado crie ódio entre eles. Assim, os próprios prisioneiros vigiam-se uns aos outros e são habituados à denúncia, obrigando-se mutuamente a obedecer.
Assim, a solidão significa ausência de liberdade mas também ausência de afeto; as relações sociais são fundadas sobre a competição, nem que seja por uma beata que não chega a ser deitada ao chão – é disputada arduamente por vários prisioneiros enquanto o privilegiado fuma o seu cigarro.
Este livro, publicado pela primeira vez em 1962, constituiu uma pedrada no charco da sociedade russa, justamente no período de alguma abertura proporcionada pelo presidente Nikita Khrushchov. Mais tarde Brejnev, seu sucessor viria a proibir o livro, obviamente. Esta obra fica na história essencialmente pelo facto de se basear na própria prisão do autor, crítico do regime no tempo de Estaline e também por ser uma espécie de ensaio para aquela que viria a ser a sua grande obra-prima, Arquipélago Gulag, publicado pela primeira vez em 1973.

Sinopse (in wook.pt):

Alexander Issaievich Soljenitsin nasceu em 1918, em Rostov, nas margens do Dom. O pai era "manga-de-alpaca", a mãe, professora primária.
Soljenitsin licencia-se em Matemática na Universidade de Rostov e pouco depois é chamado para o Exército Vermelho. Em 1942, com 24 anos, é promovido ao posto de capitão.
Em 1945 é preso sob acusação de ter feito comentários pejorativos acerca de Estaline. Os oito anos seguintes passa-os, nessa situação, em diversos campos de trabalho. O campo no qual Soljenitsin - e, com ele, o seu herói Ivan Denisovich Shukhov - cumpre grande parte da sua pena ficava na região de Caraganda, no Norte do Cazaquistão.
Em 1953, ano da morte de Estaline, Soljenitsin foi libertado. Contudo, só depois de passar mais três anos no exílio e de Kruchtchev ter denunciado a política de Estaline, é que o seu caso é revisto e a sentença anulada.
Em 1962, o nome de Soljenitsin apareceu pela primeira vez nas páginas duma revista literária russa - Novy Mir ("Novo Mundo") - narrando, com uma autenticidade que assentava na sua própria experiência de concentracionário, a história de um dia vivido por um simples carpinteiro de aldeia num dos campos de trabalho da Sibéria, no período de Estaline. Publicou seguidamente O Pavilhão dos Cancerosos e O Primeiro Círculo.
Banido da União dos Escritores Soviéticos, foi, no entanto, galardoado com o Prémio Nobel da Literatura de 1970, para o qual contribuiu em grande parte o excelente livro Um dia na Vida de Ivan Denisovich. Deste livro foi extraído um filme com o mesmo nome.

segunda-feira, 29 de maio de 2017

O Projecto Janus - Philip Kerr

Comentário:
O título pomposo, o contexto histórico do enredo e a magnífica apresentação do livro, tornam esta edição muito apelativa, que facilmente captura a atenção do leitor. As primeiras páginas não defraudam este interesse, abordando com coragem e emoção o conflito israelo-árabe no contexto da segunda guerra mundial, ou seja, nas vésperas e génese do estado judaico. Desde logo, uma abordagem arrojada: o apoio de algumas facções muçulmanas à questão judaica do programa nazi; por outras palavras, ao extermínio dos judeus. No entanto, em breve este turbilhão de bons augúrios se esvai e a leitura torna-se pastosa, sem sabor e, pior que tudo, sem uma linha definida. O leitor sente-se à deriva, perdido entre pequenas coisas sem interesse nenhum e outras cujo interesse ele só verificará no final do livro. Por esse mundo fora milhares de leitores abandonaram o livro nesta fase, o que é uma pena, porque as últimas duas centenas de páginas fazem regressar a emoção; as pequenas tramas ganham sentido, a história ganha um rumo e finalmente o leitor conclui que se trata de uma obra emocionante, lúcida, corajosa e pedagógica.
Em causa está, acima de tudo, um tema já muito abordado mas sempre interessante: a consciência alemã perante o holocausto; as feridas de um povo que se sentiu culpado mas também injustiçado, porque expiou os seus crimes de forma violenta e porque os criminosos foram também outros que, ao contrário, apareceram aos olhos do mundo como heróis. Falamos, obviamente de soviéticos e de americanos, que no final da guerra exploraram da forma que julgaram mais lucrativa a depauperada Alemanha. O plano Marshall que neste livro nem sequer é referido terá sido apenas uma forma mais de compensar a forma violenta com a Alemanha sofreu a guerra e o pós-guerra. 
Em suma, trata-se de um livro que é muito mais que um policial situado na segunda guerra mundial; é um livro sobre a consciência alemã, sobre as feridas enormes que deixou a questão judaica e sobra a consciência pesada que outras nações ainda carregam; sobre o oportunismo, sobre a maldade humana em geral; alguns dos personagens são verdadeiros monstros; e não são apenas os nazis. A procura do lucro desmedido molda a mente humana e conduz o ser humano a becos tenebrosos de desumanidade. Por isso este é um livro sobre (des)humanidade; sobre o pior da alma humana.

SINOPSE (in wook.pt)
Alemanha, 1949. No rescaldo da guerra, por entre o caos da derrota, o país é palco de todo o tipo de negócios obscuros, fraudes e intrigas políticas. Para Bernie Gunther, Berlim tornou-se demasiado perigosa e decide partir para Munique, onde voltará a trabalhar como detetive privado. No entanto, o negócio está fraco e os clientes são poucos. Quando a bela Britta Warzok o procura - o marido, responsável por um dos piores campos de concentração da Polónia, desapareceu -, Bernie está longe de imaginar a terrível conspiração que se esconde por detrás deste caso aparentemente simples. 
Na Alemanha do pós-guerra, nada é o que parece ser e, de um momento para o outro, Bernie ver-se-á envolvido numa intriga política que o ultrapassa. Quem ditará as regras do jogo serão antigos médicos das SS, ex-nazis em fuga à justiça, agentes da CIA e organizações secretas que apoiam a fuga dos carrascos do Terceiro Reich. Conseguirá Bernie Gunther enfrentar os fantasmas do seu passado e destruir o legado de Hitler?

terça-feira, 23 de maio de 2017

Hamsters de Biblioteca - Fernando Évora e Gonçalo Condeixa

Comentário:
Atenção – Isto que se segue não é crítica literária; é um texto suficientemente reles para pôr os cabelos em pé a qualquer crítico literário que se preze. Portanto, se porventura o leitor é crítico literário, preserve a sua sanidade mental e saia daqui. Vaze… Xô…

Logo de início, uma nota do editor (sobre a forma como os autores se conheceram) deixa um sorriso nos lábios de quem lê e esse sorriso manter-se-á ao logo de quase toda a leitura. Daqui para a frente, uma série de episódios avulsos, sobre gente avulsa, da cidade de Avulsa vão deleitar-nos até ao ponto de chegarmos à mensagem propriamente dita. Passemos a observar alguns desses traços que tanto nos divertem:
Na apresentação da bibliotecária velha, é de louvar a sinceridade e coragem do autor ao classificar de “nojenta” a verruga da senhora, porque a verruga tradicional, ou é de bruxa, a verruga dita normal, ou é do tipo Catarina Furtado, daquelas que a gente até acha bem… esta não é uma nem outra. É nojenta.
Os autores deliciam-nos depois com a descrição de outras maravilhas pitorescas de Avulsa, para além da dita verruga. Não há leitor, por mais frugal que seja, que não morda os próprios dentes ao imaginar as delicias que serão “Epifanias de ovos moles”, “apocalipses de chocolate e natas” e outras iguarias do convento de freiras de Avulsa. E como em todas as cidades, vilas ou aldeias, também em Avulsa existe um Vladimir – um obreiro de obras feitas, um génio da bricolage, que é como quem diz, dos trabalhos caseiros que deixam satisfeita qualquer dona de casa avulsana.
Neste livro, o leitor tem o inestimável privilégio de aprender o que é uma cunicultora. É, no caso, Madame Leporídia. Se continuam sem saber o que é uma cunicultora também não vou ser eu a revelar…
Inseparável de Avulsa é o seu rio, onde nadam gambozinos mais “parlatoris” do que qualquer sogra velha. Do lado direito do rio nascera Rive Gauche, lendário herói da revolução. Um dia partiu calado e voltou revolucionário, para ficar na história e deixar belas memórias nos seus conterrâneos. Só que um dia uma trapezista arrebatou-lhe o coração. Agora vegeta, velho e pacifista. Assim morrem as revoluções.
Porque será que, de todas as personagens desta magna obra, só uma tem nome português? E quem havia de ser? O Julinho Marreco, alcoólico sem abrigo e utente do hospital psiquiátrico. Este facto muitas especulações poderia gerar, quiçá uma tese – “Julinho Marreco, totó sem abrigo alcoólico – o elemento tuga na obra de Fernando Évora”. Se o elemento tuga marca assim a sua presença, também é de destacar o elemento bíblico, personificado em Jonas, o manco, que não viveu na barriga de uma baleia mas no topo de uma coluna, como Estilita. Aliás, a alcunha terá a ver com isto como poderá o leitor constatar… Mas… quem é o Estilita? É ler o livro…
Até que um dia a velha bibliotecária foi derrotada por um gato. Depois, foi em festa que veio a nova bibliotecária, jovem e arejada, esta sim, uma boa bibliotecária, capaz de arrastar o mais ignorante para a biblioteca. Tempos modernos se avizinhavam. E vieram ciganos e tendeiros. E o Rive Gauche voltou também. A revolução não saiu à rua mas saíram os sonhos. E o livro entra na zona séria. Sério mas de uma beleza extraordinária, num singelo simbolismo. A beleza da bibliotecária talvez tenha feito soltar os sonhos. Um dia, Lars perdeu um sonho… Lars, o marinheiro pescador de gambozinos é o único personagem falado na primeira pessoa… perdeu um sonho e ficou para sempre enclausurado num lar, ligado a uma máquina.
Entretanto a biblioteca tornara-se um sítio alegre e divertido, o verdadeiro centro de Avulsa, já sem necessidade dos ratos de biblioteca que caçavam livros proibidos no tempo da velha bibliotecária.
E a modernidade invade Avulsa, graças aos investimentos de Tony Garrett. Até cria um bairro social moderno, substituindo o velho bairro da Capa Torta, que tornava feia a cidade. Agora é ver o casario de arte minimalista, os parques infantis e até se projeta um aeroporto. Tudo graças ao investidor Garrett, ao arquiteto Pireu e principalmente à nova bibliotecária, a grande líder, a grande modernizadora.
Até que um dia a desgraça bateu à porta de Avulsa – o banco foi assaltado e todos os avulsanos foram chamados a fazer sacrifícios para recuperar a economia. Mas a modernidade continuaria a brilhar, graças a Garrett e à bibliotecária, sempre pronta para o serviço, mais os seus hamsters amestrados.
Estes são alguns dos traços maiores de um livro que, como se vê, é muito mais que um conjunto de histórias sobre Avulsa; aqui estamos todos nós. Aqui está um barco que não é do marinheiro Lars mas se chama Portugal. Estamos nós em tipos, em cromos divertidos mas muito sérios, bem significativos do mundo em que vivemos.

Nota Final, não menos importante – a fazer lembrar sombras chinesas, as personagens desenhadas por Gonçalo Condeixa não são aleijadinhas – são belos bonecos estilizados. Dizem que é arte moderna. Mas têm muita pinta, acreditem.

Sinopse:
Uma metáfora à História de Portugal do século XX. 
Um livro que convida o leitor a desempenhar o papel de um detetive que descobre o verdadeiro sentido dos textos e desenhos. 
Pequenas histórias sem moral —ou com uma moral muito discutível —que não deixam ninguém indiferente e que, afinal, formam uma única história.


sexta-feira, 11 de novembro de 2016

As Regras do Tagame - Kenzaburo Oe


Comentário:
A meio caminho entre a leveza de Murakami e o misticismo de Mishima, este Nobel da literatura japonesa adota um estilo simbólico, uma escrita por vezes enigmática onde significante e significado nem sempre são reconhecíveis numa leitura leve.
A estória é, na sua globalidade, uma espécie de metáfora da memória. A morte, mais especificamente o suicídio, é um tema recorrente na literatura e na arte japonesa em geral; veja-se a recorrência deste tema no cinema japonês, por exemplo. Aqui, Goro morre mas sobrevive nas cassetes do Tagame (este é o nome dado ao gravador de áudio que Kogito usava para ler as exposições orais de seu cunhado e amigo Goro). Quando Goro se suicida, a sua existência como que persiste nas cassetes e a sua memória é perpetuada na mente de Kogito, nos sucessivos flash-backs em que toda a vida dos dois amigos é revivida. O diálogo com Goro é assim mantido após a sua morte, numa afirmação da vida depois da morte; o Tagame torna-se o testemunho da eternidade. O pensamento, a reflexão, a perspetiva analítica e crítica perante a vida conferem à obra uma dimensão mística que não deixa de lembrar Mishima, na sua melancolia e misticismo. Note-se o nome Kogito, derivado do Cogito de Descartes; Kogito é aquele que pensa, aquele que existe porque pensa e o pensamento é uma espécie de perpetuação da vida.
Um outro tema central nesta obra, que lhe dá também uma dimensão autobiográfica é a relação do ser humano com a fama; Kogito é um escritor de sucesso; Goro é um realizador de cinema muito bem-sucedido; a perpetuação da memória, a prevalência da obra de arte na sua dimensão intemporal, são assuntos recorrentes no livro.
Temas menos simbólicos, mais objetivos, também têm lugar nesta obra, como é o caso da denúncia do terror da Yakuza, a máfia japonesa de que Kogito e Goro também são vítimas. 
Em suma trata-se de um livro cheio de simbolismo, numa linguagem algo enigmática, em que o ritmo narrativo é lento e a estória acaba por ser colocada em segundo plano face a esse mesmo simbolismo e também à multiplicidade de temas abordados. 

SINOPSE (in wook.pt)
As Regras do Tagame é uma notável história de amizade, perda e ambição artística que confirma Kenzaburo Oe como um dos maiores talentos do nosso tempo. Nele, o autor combina magistralmente ficção e realidade, refletindo sobre a condição humana e os temas que dão forma ao leitmotiv da sua obra: a incompreensão, a violência e a identidade.
Quando Goro, um prestigiado realizador, se suicida, o escritor Kogito, seu cunhado e amigo, fica destroçado. Goro tinha enviado a Kogito várias cassetes nas quais gravara reflexões sobre a amizade que os unia. Uma noite, Kogito escuta no Tagame uma gravação perturbadora. «Agora vou passar para o Outro Lado», anuncia Goro, e ouve-se um estrondo. Passado um momento de silêncio, a voz de Goro continua: «Mas não te preocupes, não vou deixar de comunicar contigo.» Instantes depois, a mulher de Kogito informa-o de que Goro se suicidara.

sábado, 5 de novembro de 2016

Cosmópolis - Don DeLillo



Comentário:
Foi o primeiro livro que li deste autor e fiquei um pouco dividido em relação à sua escrita. Por um lado está lá um magnífico espírito crítico, uma análise social perfeita, uma leitura psicológica das personagens brilhante mas, por outro lado, a escrita de DeLillo não deixa de ser um pouco fastidiosa na forma como aprofunda determinadas situações, tornando-se algo enfática e, por isso, perdendo ritmo narrativo e pondo em causa o prazer da leitura. Na verdade, ler este livro exige um certo esforço; nada do que o autor escreve é vão, tudo parece ter um significado, por vezes bastante simbólico.
Em causa estão todos os males da sociedade norte-americana e nova-iorquina em particular. Ao longo do dia que passa na sua limusine, a fazer lembrar o Ulisses de Joyce, Eric Packer vive todas as desgraças que um cidadão inserido neste capitalismo selvagem pode viver; devido a esse contexto o livro tem por vezes passagens verdadeiramente negras a roçar o impossível ou, pelo menos, o surreal. Eric perde tudo ao longo do dia, graças a uma aposta falhada na cotação do iene. É o retrato de uma sociedade dominada pelos mercados, por uma realidade que ninguém conhece, uma espécie de superestrutura, uma máquina medonha que nos comanda a todos sem que nos apercebamos sequer dela.
“Desumanização” podia ser o título deste livro; Packer é um autómato; por mais rico que fosse, ele nunca teria uma vida própria; é um autómato, até na relação que tem com a esposa, determinada por interesses financeiros.
Depois estão aqui todos os outros grandes problemas da américa: a desagregação da família, a criminalidade e o caos no controlo da posse de armas, a ausência total de valores humanos e de solidariedade, enfim um mundo quase apocalíptico onde reina o egoísmo e os interesses materiais.
Em conclusão, trata-se de um livro com uma grande amplitude filosófica, uma reflexão profunda sobre o sentido do humano no mundo desumanizado do capitalismo; um livro interessante, que perde um pouco no ritmo narrativo mas ganha no significado profundo daquele dia na vida de Packer.


Sinopse: (in wook.pt):
Décimo terceiro romance do escritor italo-americano Don DeLillo, "Cosmópolis" passa-se num único dia (tal como o "Ulisses" de Joyce) de Abril de 2000, antes da subida do iene e da queda dos florescentes mercados financeiros dos anos 90. Eric Packer é um multimilionário que enriqueceu com a bolsa, tem 28 anos, e decide sair da sua rica mansão e tomar a limusine para ir cortar o cabelo, pelo que tem de atravessar Manhattan. Esta travessia (há um grande engarrafamento, está claro) torna-se uma viagem vertical, um autêntico desfile de figuras e acontecimentos bizarros, paisagem da moderna alma ocidental de fim de século.

quarta-feira, 2 de novembro de 2016

Já não se escrevem cartas de amor - Mário Zambujal


Comentário:
Em primeiro lugar, destaque para a capa (dura e belíssima) desta magnífica edição da Esfera do Livro, já com alguns anos. Trata-se de uma edição de luxo, que Zambujal bem merece. Na verdade este livro é mais uma confirmação da excelência da sua prosa. Tal como noutras obras suas já incluídas neste blogue, também neste livro Mário Zambujal nos presenteia com uma escrita leve, fluida, económica e objetiva. Aqui não há lugar para divagações nem descrições supérfluas. Este estilo é próprio de algum que foi (ou é?) um jornalista de excelência.
A ação decorre nos anos 50, o que dá ao livro um tom saudosista mas descontraído, sem a pieguice da saudade melancólica que por vezes tanto afeta os nossos escritores. O que Zambujal relembra é o encanto de um tempo sem televisão, sem telemóveis, em que os encontros eram marcados com antecedência e em que os serões eram passados em conversa e convivência com os amigos, em vez da televisão. E depois havia os cafés e clubes noturnos; as distrações de uma juventude que, imagine-se, apreciava fado. Na verdade, o fado era mais sinónimo de boémia do que de saudosismo piegas.
Por outro lado, estamos nos anos “de ouro” da PIDE, dos bufos disfarçados em qualquer esquina, dos rufiões cobardes que cometiam crimes em nome da lei, da censura que mantinha o povo calado e ignorante e tudo o mais que caraterizava a peculiar ditadura de Salazar.
Ah, e para quem aprecia, é uma bela história de amor, com um final muito interessante.
Em suma, tal como acontece com qualquer livro de Zambujal, também este constitui uma leitura leve e divertida. No entanto, escrita leve não significa leveza de ideias; pelo contrário, é um belo testemunho daquela época numa Lisboa boémia que sobrevivia à ditadura.

Sinopse: (in wook.pt):
Duarte é um jovem bon vivant, que, entre as noites glamorosas passadas no Grande Casino Internacional do Estoril, as tardes de café no Chave D’Ouro, no Palladium ou no Martinho do Rossio e a vida boémia nas boîtes da capital, vê o seu coração ser arrebatado por uma jovem alta, esguia, loura e de sorriso luminoso, de nome Erika. Mário Zambujal transporta-nos, nesta novela de prosa clara e original, pautada de humor, imaginação e sensibilidade, numa viagem de imagens e memórias, à Lisboa dos anos 50. Uma época de apetites e excessos. De paixões e desventuras. Era um tempo em que havia tempo. Até se escreviam cartas de amor.

quinta-feira, 27 de outubro de 2016

O Primo Basílio - Eça de Queirós


Comentário:
Ler Eça de Queirós é diversão pura. Fosse ele inglês ou americano e seria um dos melhores do mundo. Este livro é, na minha opinião, um dos mais bem conseguidos de Eça, sem o “peso” de Os Maias, sem as descrições de A Cidade e as Serras, sem o volume de A Capital. 
Esta obra é a melhor ilustração daquele que é o verdadeiro traço distintivo do grande Eça: a crítica social. Aqui, cada personagem é um “cromo” típico do grupo que representa. O alvo mais evidente da crítica queirosiana é, neste livro, a burguesia, com o seu diletantismo, a sua ignorância e, acima de tudo, a sua ausência de ocupação efetiva que se nota mais no caso da mulher. Luísa é vítima da sua própria inação, da falta de ocupação, que a leva à procura de experiências, nomeadamente da aventura amorosa com o ex-namorado, Basílio. Este, por seu turno é o exemplo típico do diletante burguês: desocupado, vive de rendimentos. É insensível, não olha a meios para atingir os seus fins e é capaz de por em causa a felicidade de Luísa por mero capricho.
O Conselheiro Acácio é o protótipo do político inculto, com uma cultura superficial mas que exibe com pompa e vaidade. A sua hipocrisia está patente no facto de exibir uma moralidade conservadora ao mesmo tempo que mantém um caso amoroso com a criada.
Mas também a classe popular é criticada por Eça de Queirós: as pessoas da rua comentam de forma mordaz a vida de Luísa e as suas aventuras, com uma maledicência impiedosa. A própria criada, Juliana, é ambiciosa e coloca toda a maldade e egoísmo na ambição de enriquecer, mesmo que à custa da desgraça de outros.

O final do livro talvez seja mais romântico que realista; Eça não resiste a uma espécie de “dramalhão” que, a meu ver, destoa um pouco do clima divertido e leve do livro. Mesmo assim é um dos livros de leitura mais agradável que Eça escreveu e aquele em que é mais visível a sua crítica social, ou melhor dizendo, sátira social. Recomendado para todas as idades e todo o tipo de leitores.

Sinopse (in wook.pt):
Escrito em Inglaterra, O Primo Basílio, publicado em 1878, é um romance de costumes da média burguesia lisboeta e uma sátira moralizadora ao romanesco da sociedade da época.
Luísa é uma vítima das suas leituras negativas e da baixeza moral do primo, quando a ausência do marido a deixou entregue ao seu vazio interior. É uma vítima do ócio.
Eça sugere artisticamente os traços psicológicos das várias figuras da obra com os seus dramas, que de forma alguma enfraquecem o clima trágico, denso, do drama da heroína.

segunda-feira, 24 de outubro de 2016

O Mundo de Sofia - Jostein Gaarder


Comentário:
Sofia é a palavra grega para “sabedoria”; daí, penso eu, a escolha do nome da personagem principal. Este é, de facto, um livro sobre o saber. Mas é também um livro sobre a totalidade da alma humana; mais do que retalhos de emoções, pensamentos, ideias, perceções sensoriais, etc., nós somos um todo; uma totalidade.
Não é por acaso que este livro foi escolhido para o primeiro volume da épica coleção Grandes Narrativas, da Presença. E não é por acaso que estamos perante um campeão mundial de vendas.
A receita é muito simples: uma história da filosofia para principiantes, intercalada numa história de ficção. Mas não se iludam os adeptos do romance: a “estória” não é lá muito elaborada. Um filósofo escolhe uma miúda de 15 anos para lhe contar a história dos grandes filósofos e a parte ficcionada anda em torno desse misterioso contacto. O certo é que, na minha opinião, o livro vale muito mais pela parte filosófica do que pela ficção. Numa linguagem simples e até atrativa são percorridos os grandes momentos da filosofia, desde as explicações mitológicas do mundo pré-clássico até às grandes correntes do século XX como o existencialismo e o marxismo.
O facto de a componente ficcional não ser especialmente elaborada não impede que cumpra em pleno a sua principal função: a de mostrar que para lá das querelas históricas entre empiristas e racionalistas, entre existencialistas e idealistas, entre platónicos e aristotélicos, há uma componente na alma humana que nunca se pode negligenciar: a capacidade de fantasiar. Podemos ser inteligentes, sensíveis, emocionais ou idealistas; mas temos sempre a imaginação e a capacidade de sonhar; é essa, a meu ver, a grande lição de Sofia.
Em conclusão, trata-se de uma obra que todos os que gostam de livros devem ler; e guardar bem perto para consulta quando a dúvida surgir sobre Hume, Espinosa, Platão, Marx, Sartre ou qualquer outro grande nome da filosofia.


Sinopse (in wook.pt):
O bestseller mundial, «O Mundo de Sofia», é a prova de que Demócrito, Aristoteles, Kant, Espinosa, Freud e os outros são fabulosos personagens romanescos. Um thriller filosófico à boa maneira, com a vantagem de possuir uma elegante e inexcedível clareza. «O Mundo de Sofia» de Jostein Gaarder é um sucesso literário só comparável ao «Nome da Rosa» de Umberto Eco.

domingo, 4 de setembro de 2016

Crime na Via Ápia - Steven Saylor


Comentário:
Fascinante, tal como todos os livros desta série. Juntar a realidade histórica de Roma antiga, com ficção policial foi a ideia genial que Steven Saylor seguiu com todo o proveito, obtendo um sucesso enorme em termos de vendas. Em Portugal, a sua publicação em formato de bolso tornou estes livrinhos obrigatórios para que gosta de leituras de verão, levezinhas e num formato perfeito para levar para a praia.
Neste volume o Descobridor, Gordiano, investiga a morte de um político populista rico, Clódio, bem como a acusação popular imediata do seu rival, Milo. Pelo meio, como sempre envolvido na trama está o célebre orador e político Cícero. O pano de fundo é a última fase da República Romana, em que Pompeu, o Grande, governa quase como ditador face às dificuldades que a república encontrava para eleger os seus cônsules, pelo que se vivia um clima de quase guerra civil. Tal ambiente era o cenário ideal para crimes violentos, como este, que imediatamente originavam grandes tumultos populares.
Mas nem tudo era mau na Roma Antiga. Pelo contrário, é notável a forma como Saylor consegue dar-nos conta do avanço do Direito Romano relativamente a todas as outras civilizações antigas. Seria impensável para um Persa, um Egípcio ou até um Grego ter um tribunal popular regido por leis racionais e modernas, com julgamentos em que as testemunhas desempenhavam papel fundamental mas também processos de averiguações que advogados profissionais colocavam em discussão, antes de uma decisão obtida a partir da votação de jurados.
Em relação à qualidade deste livro enquanto objeto de entretenimento, só me ocorre uma palavra: magnífico. O que mais me impressiona é que o enredo exige uma enorme perspicácia ao investigador, Gordiano, mas ele nunca deixa de ser um humano vulgar, até com as suas fraquezas; tudo se passa como se a verdade se fosse revelando por si mesma, com uma pequena ajuda de Gordiano e seu filho Eco. Também os personagens históricos como Cícero, Pompeu, António ou Júlio César, são apresentados com enorme rigor histórico e em toda a sua dimensão humana, mortal.
O estilo é leve, claro, objetivo, constituindo uma leitura leve e agradável.

Sinopse: (in www.fnac.pt)

Estamos no ano 52 a.C. A luz vibrante dos archotes projecta manhas sombrias nas imponentes paredes de mármore. O rumor da multidão ecoa pela rua. O corpo nu de Públio Clódio está prestes a ser carregado através das ruas fervilhantes de Roma. Públio, um nobre que se tornara um arruaceiro, fora assassinado na mais esplêndida estrada do mundo: a Via Ápia. Milo, o rival de Públio, surge como o suspeito natural daquele crime, desencadeando uma série de actos de vingança que conduzem a cidade à beira do caos. O julgamento deste processo irá contar com um dos mais astutos discursos de Cícero e de Marco António por outro lado, Gordiano o Descobridor é contratado pelo próprio Pompeu para investigar a verdadeira causa deste crime...

quinta-feira, 25 de agosto de 2016

As Dez Figuras Negras - Agatha Christie


Comentário:
Uma das leituras mais emocionantes dos últimos tempos. Incerteza total quanto ao desfecho e um suspense permanente, não só em relação ao final como a tudo quanto vai acontecendo. O leitor nunca sabe o que acontece de seguida. É sabido que Agatha Christie é uma mestra do suspense, mas este livro, a par de Crime no Expresso do Oriente é uma enorme obra-prima do suspense, do policial e até, em alguns aspetos, do terror.
Uma das mais importantes chaves para o sucesso de Christie é que na sua escrita nada é supérfluo. Há muitos (e bons) escritores contemporâneos que deviam ler com atenção este livro para verem como são desnecessárias aquelas longas descrições herdadas da literatura realista ou aquelas reflexões pseudofilosofias que, muitas vezes só servem para entediar quem lê e mesmo para encorajar o abandono da leitura
Um outro princípio fundamental da obra de Agatha Christie é que, desde o início, o leitor conhece todos os elementos que serão fundamentais para o desfecho de todo o enredo. Nada lhe é escondido, como acontece nos maus policiais. Na verdade, há muitos atores, alguns até com algum sucesso que recorrer a um estratagema pouco honesto para com o leitor, que é o de apresentarem um culpado que entrou tardiamente no enredo. Pelo contrário, os grandes mestres do policial não escondem os trunfos. Neste livro o assassino é alguém que conhecemos desde as primeiras páginas do livro.
Finalmente, o último mas não menos importante ingrediente do sucesso: a surpresa do final. Como se diz em linguagem comum, aquilo não passava pela cabeça de ninguém… no entanto, tinha a sua lógica…

Sinopse: (em fnac.pt)
Em Fevereiro de 1972, Agatha Christie escreveu uma carta ao seu editor. Nessa missiva, incluída nesta edição especial, a Rainha do Crime elegeu os dez livros de sua autoria de que mais gostava. "As Dez Figuras Negras" foi considerado pela autora como um “desafio que lhe trouxe muita satisfação”. Publicado na Grã-Bretanha, em 1939, e nos Estados Unidos, em 1940, seria também adaptado para teatro e cinema.Dez desconhecidos que aparentemente nada têm em comum são atraídos pelo enigmático U. N. Owen a uma mansão situada numa ilha da costa de Devon. Durante o jantar, a voz do anfitrião invisível acusa cada um dos convidados de esconder um segredo. Nessa mesma noite um deles é assassinado. A tensão aumenta à medida que os sobreviventes se apercebem de que não só o assassino se encontra entre eles como se prepara para atacar uma e outra vez…

segunda-feira, 15 de agosto de 2016

A Pastoral Americana - Philip Roth



Comentário:
Decadência: eis a palavra-chave desta obra; a decadência do ser humano, a decadência de um povo e a decadência de um país.
Antes de mais nada, a crítica; a visão crítica dos Estados Unidos da América a que Roth já nos habituou em quase todos os seus livros: está aqui tudo: a criminalidade, mesmo jovem, o absentismo, o moralismo, o conservadorismo, etc. Até no aspeto económico: a necessidade de mão-de-obra barata, com a deslocalização para a Ásia de muitas indústrias.
Num plano mais pessoal, fica bem patente a nostalgia e a saudade nas recordações de infância. A vida de Seymour Levov (heróica na juventude e trágica no final) exprime a visão negativa do destino e da condição humana. É que por oposição a essa infância feliz há uma realidade grotesca, medonha, que atinge o Sueco Lvov: a sua filha que aos 16 anos se torna assassina, terrorista, é violada e adere a uma seita radical. Por detrás disto está um inevitável e dramático choque de gerações – “Você amou sua filha como se fosse a porra de uma coisa”; talvez a causa do conflito esteja nesse culto da posse, típico do sistema capitalista, mas também num excessivo zelo pelo cumprimento das normas; a geração antiga tende para o certinho e direitinho, nunca preparando os filhos para a quebra do protocolo, para a necessária e incontornável quebra das regras.
Mas, para além do conflito de gerações está também um terrível choque pessoal, um destino dramático e doloroso.
Por todo o livro é nítido um certo lamento do envelhecimento e, ao mesmo tempo uma visão romântica do passado a condizer com uma visão pessimista do futuro e uma leitura bem negra do presente. O cancro de que sofre o escritor /personagem/narrador é o símbolo dessa visão cinzenta da realidade do país e do mundo.
A Pastoral e a contrapastoral: “A filha que o transporta para fora da sonhada pastoral americana e para dentro de tudo o que representa a sua antítese e o seu inimigo, para a fúria, a violência e o desespero da contrapastoral — para a selvajaria nativa americana.” A vida certinha, feliz, perfeita do Sueco Levov representava a Pastoral americana – a cartilha do sucesso, em que cada geração é um aperfeiçoamento da anterior. Mas a filha, que representa a última geração corta com a Pastoral; ela e a sua geração são a sua antítese. Assim, neste aspeto, a obra assume uma feição algo catastrofista ou, pelo menos, pessimista em relação ao destino da América. Revoltada contra a guerra do Vietname e contra o comodismo, bem como a acomodação da geração dos pais, a juventude dos anos 60, aqui representada por Merry, torna-se contestatária. E o país não está preparado para a compreender.
Mas a revolta não era apenas contra a guerra. Esse foi apenas o ponto de partida; era contra todo o modelo de vida capitalista. Contra a pastoral burguesa. Em causa estava por exemplo a procura de mão de obra barata. A crise económica, da qual a ruína da indústria das luvas é símbolo, vai dando lugar à crise social. Multiplicam-se os movimentos de contestação e os atentados. O livro de Roth torna-se premonitório em relação à América atual.
Um ritmo narrativo por vezes muito lento torna o livro algo enfadonho, ao contrário de outras obras de Roth. Por exemplo, porquê tanto espaço para declarar a futilidade dos concursos de misses? E porquê tanto pormenor na descrição dos métodos de fabrico de luvas de couro? Não vejo como o leitor possa seriamente beneficiar disso… é certo que Roth traça um desenho aprimorado da realidade norte-americana, especialmente nas suas faces mais negras, mas o exagero de pormenores retira, em alguns capítulos, esse prazer da leitura que todos procuramos.

SINOPSE (in wook.pt)

Philip Roth aborda frequentemente a necessidade humana de demolir, desafiar, opor, separar. 
Neste livro, contudo, foca-se no oposto: a necessidade de viver uma vida calma e normal. 
Seymour «Sueco» Levov, um lendário atleta universitário, devotado homem de família, trabalhador esforçado e próspero herdeiro, envelhece na triunfante América do pós-guerra, vendo esfumar-se tudo o que ama quando o país começa a efervescer nos turbulentos anos 60. 
Nem o mais tranquilo e bem-intencionado cidadão consegue escapar à vassourada da história, nem o Sueco pode permanecer para sempre na felicidade da amada e velha quinta em que vive com a sua bela mulher e a filha, que se torna uma revolucionária terrorista apostada em destruir o paraíso de seu pai. A inocência do Sueco Levov é varrida pelos tempos - como tudo o que foi criado pela sua família, através de gerações, deitado por terra na violenta explosão de uma bomba no seu bucólico quintal.

sexta-feira, 5 de agosto de 2016

Triste Fim de Policarpo Quaresma - Lima Barreto


Comentário:
A quem lê este livro é impossível não recordar o imortal D. Quixote. Quaresma é, tal como o cavaleiro de La Mancha, o idealista ingénuo, o homem que cumpre um sonho se bem que singelo, inocente. Ele era funcionário. Mas, ao contrário de todos os outros (afundados na passividade rotineira) ele vai à procura de um ideal, neste caso a defesa intransigente dos valores da Pátria, que ele considera a melhor de todas. O Brasil é o seu valor supremo e ele pagará caro por esse sonho de mostrar aos seus concidadãos essa grandeza.
Este enredo tão peculiar e interessante é o ponto de partida para um livro cheio de interesse, pela beleza de uma linguagem simples, direta, como quem conversa com o leitor mas também e acima de tudo pela deliciosa crítica, sempre num tom bem-disposto, bem-humorado. Os alvos são vários; a mordacidade da crítica atravessa toda a vida social daquele Brasil de início de século, mas desses alvos sobressaem especialmente dois: os políticos e os funcionários públicos. Os políticos, apenas interessados no voto deixam-se levar por um populismo calculista e por um amor ao poder que os leva aos mais baixos “jogos” de influências; esses jogos são por sua vez conduzidos pela corrupção – tudo se decide mediante os pedidos e os favores. Os funcionários públicos, por sua vez, são criticados pela sua indolência, pela passividade, pela inutilidade e por uma cultura pedante, sem conteúdo.
Mas não fica por aqui a pena mordaz de Lima Barreto. São também seus alvos os costumes: por exemplo o casamento como único objetivo da mulher, o papel passivo do elemento feminino, como espécie de figura decorativa que, no entanto é vítima de um crónico machismo; a personagem Isménia, por exemplo, morre vítima dessa condição feminina. É ainda apontado o pedantismo e a ostentação dos licenciados e até dos escritores dados ao barroco. Os militares são inúteis e corruptos; as suas promoções são obtidas por influências e a sua competência é nula. Mas nem o povo escapa; o desleixo e a indolência são os seus principais defeitos, a par do diletantismo e ignorância das classes altas – “Aquele Quaresma podia estar bem, mas foi meter-se com livros... É isto! Eu, há bem quarenta anos, que não pego em livro...” (fala do general amigo de Quaresma). Mais interessados no poder do que no progresso do país, militares e políticos controlam o povo, conduzindo-o a revoltas e a conflitos dos quais só eles beneficiam.
Em suma, estamos perante um livro que marcou o início do modernismo literário no Brasil, um livro marcante em termos históricos e que podia e devia ser mais divulgado, pelo menos em Portugal.

segunda-feira, 1 de agosto de 2016

O Homem que sabia Javanês e outros contos - Lima Barreto

Comentário:
Lima Barreto é considerado um dos mais importantes escritores brasileiros, embora pouco conhecido em Portugal. Viveu na transição do século XIX para o XX pelo que o seu estilo enquadra-se no realismo então em voga, essencialmente na ênfase que dá à crítica social e política. Mas esta obra vai mais além; o sentido de humor e a sátira tornam este livro delicioso de ler.
O seu estilo é leve, fluido, direto, colocando a narração dos factos acima de quaisquer considerações ou descrições exageradas. A sua linguagem é acessível e sempre bem-humorada.
Desta edição do Polo Editorial do Paraná constam 17 pequenas narrativas. O conto que dá título ao livro é uma pérola; uma preciosidade pela crítica deliciosa e bem-disposta à forma como algumas pessoas ascendem socialmente. O homem não sabia absolutamente nada de javanês. Mas fingiu que sabia e acabou ensinando essa estranha língua e daí à subida na escala política foi um pequeno passo. 
O homem não era inteligente; era esperto; e é essa esperteza saloia, tão típica dos políticos que aqui é retratada e satirizada.
Mas há muitos outros tipos sociais retratados e por vezes parodiados nestes contos e dos quais aponto alguns exemplos. 
Em Três Génios de Secretaria, a crítica ao funcionalismo público: negligente, incompetente, maledicente. Mas todos temos um pouco de funcionário público: “todos nós nascemos para empregado público”. A burocracia, bem kafkiana é a lógica do sistema – a lógica da idiotice em que todos, afinal, com o nosso espírito de funcionário público, nos enquadramos.
Em O Número da Sepultura conta-se a história de Zilda, esposa clássica, recatada e de bons costumes, a quem uma vez aconteceu algo de pouco habitual. Mas só uma vez… É a sátira à classe média, a pequena burguesia sem grandes aspirações, por isso mesmo conservadora nos costumes e reticente a qualquer risco.
Em O Falso Dom Henrique V, Lima Barreto constrói uma narrativa completamente diferente: cria um contexto histórico para o qual transpõe a acérrima crítica política às realidades do seu tempo, nomeadamente às políticas sociais injustas e às intrigas palacianas em que “vale tudo” para atingir o poder político.
O pequeno conto O Pecado constitui uma crítica brutal à igreja católica.
No conto O Filho de Gabriela, Lima Barreto explica de que forma a origem social e, principalmente, a consciência dessa origem social condicionam a vida de qualquer ser humano. Horácio nasceu pobre e enjeitado; os seus pais adotivos, no entanto, nunca deixaram de lhe fazer sentir a distância que a sua condição impunha; e seria o próprio Horácio a interiorizar a sua inferioridade. Com consequências terríveis.
Em jeito de conclusão podemos dizer que estamos perante um livro que consegue aliar de forma notável as mensagens que o autor quer transmitir a um formato de leitura muito agradável. E quando assim é, só se pode dizer que vale a pena ler! 

terça-feira, 26 de julho de 2016

Moby Dick - Herman Melville


Comentário:
Moby Dick é um clássico da literatura mundial. Escrito e publicado em meados desse grande século que foi, para a literatura, o XIX, não obteve desde logo grande sucesso e a sua genialidade só viria a ser reconhecida no século XX.
Não é, reconheçamos, um livro capaz de agradar a todos os leitores; quem aprecia narrativas cheias de ação e de incerteza (vulgo suspense) não será certamente o livro ideal. Pelo contrário o livro deixará maravilhado aquele leitor que gosta de aprender algo e que aprecia uma leitura com um toque filosófico. Penso ser o meu caso e por isso “devorei” o livro; foram 830 páginas que sorvi com interesse e deleite.  
Moby Dick não é uma baleia branca; é um cachalote branco com o tamanho magnífico de 90 pés (mais de 27 metros) e o livro, a propósito da caça movida a esse animal, leva ao autor a “ensinar-nos” tudo quanto no seu tempo se sabia sobre baleias e cachalotes. Assim, o livro é antes de mais extremamente pedagógico sobre estes animais mas também sobre a vida marinha, sobre a navegação à vela, sobre os hábitos e sobre a vida dos caçadores. Tudo isto é contado no discurso direto do personagem Ismael, um marinheiro de segunda ao serviço dessa personagem magnífica que é o capitão Ahab.
Para lá desse lado pedagógico há, evidentemente, a narrativa da viagem. E aí perpassa um profundo humanismo como ideia básica da filosofia de Melville – da tripulação fazem parte brancos, asiáticos, índios e negros, o que é curioso tratando-se de um conjunto de apenas vinte e poucos homens; e a relação entre estes diferentes personagens é perfeita na solidariedade, na amizade mesmo.

Mas a ideia fundamental do livro é esta: quão pequenos somos nós, humanos, perante a natureza; é a mesma ideia que o Antigo Testamento nos apresenta quando nos descreve o episódio de Jonas no ventre da baleia -  a pequenez, a humildade que o ser humano deve ter sempre perante o natural e o sobrenatural. Aqui, Ahab, o capitão que persegue Moby Dick, não cai nos extremos de odiar nem de venerar o enorme animal; o seu sentimento é de respeito. E esse respeito leva a que a luta entre homem e animal tenha de ser igual. No final dá-se o confronto do qual, evidentemente não vou revelar o resultado; posso apenas dizer que é um final magnífico.

SINOPSE
Mas Ahab, quando se dirige à tripulação apelando para que o ajudem na sua demanda vingativa de caçar e matar a invencível Moby Dick, a branca baleia-leviatã, consegue reunir todos à sua volta, incluindo Starbuck, o relutante primeiro-oficial. Independentemente do grau da sua culpa (a escolha da tripulação era livre, ainda que apenas a recusa geral pudesse detê-lo), é melhor pensar no capitao do Pequod como num protagonista trágico, muito próximo de Macbeth e do Satanás de Milton. Na sua obsessão visionária, Ahab tem em si algo de quixotesco, apesar da sua dureza não ter nada em comum com o espírito de jogo do Quixote.

quarta-feira, 20 de julho de 2016

A Guerra do Fim do Mundo - Mario Vargas Llosa


Comentário:
Impressionante. Nunca pensei que viria a gostar tanto deste livro. São 620 páginas de pura narração; aqui não há reflexões, filosofias, nem descrições alongadas; tudo é narrativa, ação. Evidentemente que a escrita de Llosa tem a sua simbologia, as suas metáforas, as suas mensagens implícitas. Mas basta que o leitor se deixe encaminhar pelas pistas envoltas na narrativa para que compreenda essas mensagens, sem ser preciso que o autor o mace com grandes explanações teóricas.
Então que mensagens são essas, que ideias implícitas estão por detrás dessa narrativa? Antes de mais convém dizer que a estória se baseia numa história verídica, que é uma das páginas mais interessantes da história do Brasil (sim, embora o autor seja peruano, a ação decorre no Brasil). Trata-se da revolta de Canudos, ocorrida na Baía em finais do século XIX. Logo à partida, uma ideia fundamental para nos dar que pensar: de como um idealista ingénuo, ignorante, inculto consegue mover uma multidão e colocar em pé de guerra com as autoridades políticas e militares todo um povo, até aí humilde e calado? Obviamente, António Conselheiro não era um político nem um revolucionário; era a penas um lunático ou então um idealista radical; o seu sonho era criar uma comunidade justa, igualitária, onde a lei de Deus proporcionasse ao povo aquilo que ele mais ansiava e de que mais carecia: de justiça social. Está aqui, a meu ver, uma profunda lição para os tempos que correm; mais uma vez, é o passado, a História, a ajudar a compreender o presente: o radicalismo encontra raízes férteis na desigualdade. No entanto, continuamos cegos a esta lição e o mundo continua a explorar a desigualdade, para promoção de elites cada vez mais poderosas. António Conselheiro não promoveu a revolta política como não foi a religião islâmica que criou o terrorismo atual.
Obviamente, o movimento, inicialmente pacífico de António Conselheiro não era inócuo em termos políticos; e aí é que a questão se complica, quando se fazem sentir os efeitos políticos. Conselheiro e seus apaniguados viam com maus olhos o sistema republicano recentemente implantado no Brasil; eles entendiam que só a monarquia podia sustentar uma sociedade regida pelas leis da moral católica. Portanto, ele terá a oposição do poder político. Por outro lado, este movimento não podia pactuar com os grandes fazendeiros da região da Baía, onde estava implantado, pois esses terratenentes exploravam o povo, que vivia miseravelmente; portanto, eles teriam assim a oposição das elites sociais.
O conflito iria ser inevitável. A partir daí, o que mais choca neste livro é a forma como decorre esse conflito armado: milhares e milhares de soldados armados até aos dentes são enviados para Canudos a fim de esmagar a revolta. No entanto, as primeiras expedições são esmagadas pelas forças de Conselheiro – simples jagunços que outrora aterrorizavam o sertão e que agora chefiam um exército de pé descalço mas que conta com uma força tremenda que o faz vencer as armas – a força da fé; a força de um sonho. Como diz o próprio Llosa num outro Livro (Cadernos de Dom Rigoberto), “O homem, um deus quando sonha e apenas um mendigo quando pensa”.
Mas, como diz António Mega Ferreira no prefácio a esta edição dos livros RTP, o que está aqui em confronto são duas visões do mundo: uma inocente, ingénua, baseada no sonho e outra calculista, poderosa, ambiciosa e implacável no uso da força. Inevitavelmente, venceria a segunda. Mas a lição histórica ficou embora a maioria dos seres humanos continue a não a entender…

Sinopse:
Guerra de Canudos é ainda hoje um acontecimento ímpar na história do Brasil, e Mario Vargas Llosa apresenta neste romance um brutal e poderoso retrato deste momento tão singular.
Canudos, uma remota localidade do Nordeste brasileiro, foi, nos finais do século XIX, palco de um movimento de tipo messiânico que desembocou numa violenta guerra civil, na qual morreram milhares de brasileiros.
Em A Guerra do Fim do Mundo, Mario Vargas Llosa dá vida a uma soberba galeria de personagens de ambos os lados da contenda, que, passo a passo, chegará a atingir proporções delirantes.

quinta-feira, 14 de julho de 2016

Baú de Mimos - José Fernandes da Silva

Comentário:

Cá está mais uma obra em prosa do poeta bracarense José Fernandes da Silva e, como sempre, com uma bela capa, da autoria de Maciel Cardeira. E o interior também não desilude. Pelo contrário. Anotemos em primeiro lugar os méritos extensivos a todos os livros do autor: escrita clara, fluida, simples (no melhor sentido do termo – desprovida de artificialismos). E a musicalidade, como já referimos em comentários anteriores: José Fernandes escreve como quem compõe; as palavras soam a melodias, a poemas cantados. Como sempre, está presente o habitual toque de humor singelo e discreto, o recurso ao linguajar popular mas sem cair no “vernáculo”.
Agora a novidade: desta vez é-nos oferecido um conjunto de minicontos (Continhos, na singela expressão do autor que fornece subtítulo à obra) sob um denominador comum: a condição de ser avô e as relações entre estes e os netos. Assim sendo não poderíamos deixar de ter um livro cheio de ternura. Ou melhor, para ser mais abrangente e fiel ao espirito do autor: mais humanismo; um humanismo sincero, genuíno, comovente, como muito bem observa o escritor Fernando Pinheiro na contracapa do livro e que advém da alma grande do escritor. 
Como pano de fundo à generalidade destes pequenos contos está o mundo rural no seu mais puro bucolismo, em cenários de verde e azul a lembrar Dinis ou Aquilino, certamente dois autores que tiveram profunda influência no autor. Conhecendo, como é o nosso caso, a realidade atual das aldeias retratadas, ficamos com uma amarga sensação de paraísos perdidos; estas aldeias estão hoje invadidas e ameaçadas pelas indústrias e pelos casarios urbanos e, pior que tudo, por uma nova mentalidade - a mentalidade do lucro, do egoísmo.
Também sempre presente está a religiosidade da gente simples; não uma religiosidade beata ou interesseira mas genuína e mesmo divertida – a religião como festa da alma e do corpo. Neste quadro respira-se acima de tudo um intenso otimismo – raramente um conto acaba mal; talvez, neste retrato do passado haja também uma mensagem, ainda assim, de crença no futuro.

segunda-feira, 4 de julho de 2016

Vidas Secas - Graciliano Ramos



Comentário:
Foi o primeiro livro que li deste autor brasileiro e devo dizer que fiquei maravilhado. Trata-se de uma história singela, simples mas terrivelmente dramática de uma família sertaneja, uma família sem terra, à procura de um meio de sobrevivência no inclemente sertão brasileiro.
Escrito numa época de ditadura (livro escrito em 1938, ditadura de Getúlio Vargas), toda a obra constitui um grito abafado de revolta, face a todo um contexto que dita uma miséria inenarrável da família. E esse contexto pode sintetizar-se em 3 elementos: o tempo, a autoridade e a sociedade. O tempo, inclemente, ameaça com a seca que mata homens e animais; a autoridade, aqui representada pelo bárbaro soldado amarelo, impõe a lei injusta, a que o personagem principal obedece mas que o explora e o pune injustamente; a sociedade como que empurra a família para a solidão: o dono das terras é injusto e explora a família que se vê forçada a procurar terra noutras paragens; na cidade para onde a família se desloca num dado momento, eles sentem ainda mais a solidão; só encontram um pouco de paz na igreja. De resto, a ameaça da injustiça está por todo o lado. Esta dimensão social, esta necessidade de intervir na realidade social faz-me pensar numa eventual influência dos escritores existencialistas franceses ou então nos nossos neorrealistas que, nessa época, começavam a fazer-se notar em Portugal.
Enfim, estamos perante todo um retrato de injustiça, de revolta surda, de miséria total. A família de Fabiano deixa o leitor emocionado pela miséria em que cai e da qual não consegue sair. A essa miséria junta-se a incrível solidão de cada um dos personagens – Fabiano sonha com uma terra, Sinhá Vitória, a mulher, sonha com um a cama de couro e as crianças não sonham – vivem a miséria como se não houvesse outro mundo.

quinta-feira, 30 de junho de 2016

Em Busca do Tempo Perdido - vol 7 - O Tempo Redescoberto - Marcel Proust



Comentário:
Numa espécie de exame de consciência, o narrador reconhece que a sua relação com Albertina fracassou devido ao seu “génio indeciso e impertinente”. Depois de tantas reflexões, de tantos fracassos e desilusões, ele parece chegar ao âmago da questão – entre indecisões e reflexões excessivas, ele deixou que o tempo o ultrapassasse; é o tempo que governa a vida, e não o pensamento. Mas agora, só pelo pensamento, pela memória, ele pode regressar a esse tempo perdido. Inicia-se aqui a grande luta: entre o tempo perdido e o tempo recuperado, reencontrado nos confins do pensamento. A dicotomia passado/presente é então substituída por uma outra: a dicotomia mundo real versus pensamento, como se estivéssemos perante dois mundos paralelos: o real e o pensado
Mas agora é o mundo real que se impõe com toda a sua crueza; é a guerra; a Primeira Guerra Mundial. A Grande Guerra. Nesse contexto não há espaço para o pensamento. A guerra abafa a memória e destrói o tempo ao eternizar o horror. Mas nos salões da aristocracia parisiense, tudo contínua igual, porque “a morte de milhões de desconhecidos traz apenas um arrepio, talvez menos desagradável que o causado pelas correntes de ar” (pág. 73). É a vulgarização da morte. Nos salões e nas discussões políticas isso pouco parece interessar. A alta sociedade parisiense tenta viver acima da guerra, mantendo as suas aparências, vícios e virtudes… mais aqueles que estas, diga-se. O próprio Charlus, germanófilo, tradicionalista, confessa: "perdemo-nos no diletantismo”.
Da mesma forma que Proust retrata as virtudes de grandes aristocratas como a Sra. de Guermantes, também retrata, com a mesma objetividade e crueza, os vícios incríveis de alguns outros nobres, como o quase louco Sr. de Charlus.
Mas este volume distingue-se dos outros, a meu ver, por ser o mais revelador da alma do narrador e, por extensão, do escritor; Marcel viaja constantemente para dentro de si, como se cada experiência vivida necessitasse de uma dimensão paralela, que ocorre interiormente.
Neste reinado do interior cabe um papel especial à arte. A arte é o único meio que permite ao homem sair de si mesmo e comungar com os artistas a múltiplas visões do mundo.
Mas o tempo é inexorável e é basicamente disso que trata este livro. Marcel sente a velhice aproximar-se e encara essa aproximação como uma espécie de derrota pessoal face ao Tempo. Na parte final do livro, à medida que as personagens principais envelhecem, o tom cada vez mais melancólico da linguagem vai sendo acompanhado por uma espécie de decadentismo latente. Sente-se a decadência da aristocracia. Com a derrota dos impérios na Primeira Guerra Mundial o novo mundo, é, definitivamente, da burguesia.
Mas o grande confronto dá-se no interior do narrador. Passado e presente, real e pensado, são elementos em conflito. A síntese há de encontrá-la Marcel na escrita; ele vai, finalmente, escrever o seu livro e nele se fará a fusão do Tempo; aí sim, será o Tempo reencontrado.

sexta-feira, 24 de junho de 2016

Em Busca do Tempo Perdido - vol 6 - A Fugitiva - Marcel Proust



Albertina sai de casa do narrador. Este, que ainda há pouco desejava a separação, fica quase desesperado com a sua ausência e planeia fazê-la voltar a todo o custo. Mais uma vez fica patente a inconstância emocional do narrador
Não é a inteligência que comanda a vida, diz Proust; esta é uma das ideias fundamentais desta grande obra e deste genial escritor. Alimentado pelas ideias de Bergson (segundo os especialistas) Proust dá primazia ao ser pensante mas sem que esse pensamento determine, racionalmente, a vida. O destino acaba por ser determinado por decisões intuitivas mais do que racionais. No caso do narrador desta história, ele parece alimentar uma necessidade contínua de reviver todo o seu passado, como que criando um tempo novo, em que todos os passos são analisados pelo pensamento e assim revividos interiormente (dando aqui sentido ao título geral da obra).
Este primado do pensamento é, no entanto, acompanhado por uma espécie de primazia da vontade – uma vontade egoísta: ele entendia como natural a partida de Albertina mas apenas se e quando determinada por ele.
A natureza complexa e mesmo absurda da alma do narrador – e do ser humano – é bem expressa neste exemplo: ele, agora, quer que ela volte mas não quer, de maneira nenhuma, que ela saiba que ele quer! Ou seja, para ele, Albertina há de voltar sem que ele se humilhe ao ponto de lhe pedir o regresso ou sequer admitir que o deseja.
Subitamente, neste volume, a morte entra em cena e o narrador é apanhado no seu mais profundo egoísmo pensante. É quase inacreditável como, perante a morte dramática e violenta de Albertina, o narrador continue a alimentar a sua obsessão sobre as hipotéticas traições. Seguem-se numerosas páginas em que ele esmiúça o passado da sua amada, alimentando o seu sofrimento agora em duplicado: sofrendo com a sua ausência mas principalmente com a certeza cada vez maior das infidelidades de Albertina. As razões deste procedimento, no entanto, têm mais a ver com um certo masoquismo do que com qualquer maldade ou sadismo. Tudo parece vontade, ou necessidade, de sofrer para que o tempo cumpra o seu destino. No fundo ele apenas quer aplacar a dor do ciúme, mas é atingido pela dor dos factos que o esmagam.
Uma ideia fundamental neste livro – e em toda a obra – é o peso do passado sobre o pensamento e, em consequência, sobre a vida. Prova disso é a sensação que o narrador tem da presença de Albertina após a sua morte. Por outro lado, a presença dela nas páginas do livro e, consequentemente, no espírito do narrador, vai muito para além da sua morte.
Nos capítulos finais, ele vai, finalmente, libertando o seu espírito do drama e regressam os salões da grande aristocracia, onde novas aventuras o esperam…
Uma nota final para afirmar que o título original deste volume - Albertine disparue - é bem mais adequado do que o título português. Às vezes pergunto-me porque é que as editoras têm de assassinar títulos originais...

segunda-feira, 13 de junho de 2016

Em Busca do Tempo Perdido - vol. 5 - A Prisioneira - Marcel Proust


Comentário:
Neste quinto volume, talvez mais do que em qualquer outro, é notável a linguagem poética do autor e o caráter reflexivo da narrativa. Por isso, a obra exige uma leitura pausada, refletida, vagarosa, como se o mais importante fosse saborear a escrita.
Para Proust parece claro que o homem é aquilo que pensa. São os seus pensamentos que dão vida ao narrador e são eles que, em muitas fases, constituem a própria vida. Este primado do pensamento leva, muitas vezes, à inação, à derrota antecipada do ser e do agir, perante o mundo concreto. Outras vezes, este reinado do pensamento conduz a conflitos interiores profundos e graves: quando ele está com Albertina, quando a sua relação se concretiza no contacto físico, o narrador sente-se feliz e realizado (várias vezes compara os beijos de Albertina aos beijos de sua mãe, na infância) mas logo que fica entregue aos seus pensamentos, ele deixa-se conduzir pela tirania impiedosa do ciúme. Aí ele revive momentos dolorosos do passado, como quando soube do relacionamento homossexual de Albertina e logo inventa traições. Escreve Proust: “O ciúme nada mais é muitas vezes que uma inquieta necessidade de tirania”. Se é verdade que Proust considera Albertina prisioneira do narrador por via do seu ciúme, não é menos verdade que o próprio narrador é prisioneiro dos seus pensamentos.
O primado do pensamento conduz à inação. E isto nota-se na vida do narrador, também em termos profissionais. Embora inquieto e mesmo infeliz na maior parte das situações, o narrador tem uma profissão: ele considera-se escritor. No entanto, nem uma página ele escreve! Ao longo destes cinco volumes que já li não há referencia a nenhuma página escrita, apenas aos lamentos pela constante procrastinação.
Um dos muitos motivos de reflexão que este livro nos deixa, e que aponto aqui apenas a título de exemplo, é o tema da mentira nas relações amorosas. Albertina, Charlus, Morel, todos mentem. E a mentira alimenta o ciúme. E assim as relações amorosas se transformam em campos de batalha. O narrador (que neste volume aparece por duas vezes nomeado como Marcel) conduz essa guerra para o interior de si mesmo e com ela se martiriza – ele tanto diviniza a sua amada como a odeia pelo simples facto de ter contactos com as amigas.
Entretanto continuam as aventuras amorosas do senhor de Charlus. Agora é Morel, o jovem músico, o alvo da sua paixão. Significativo é o facto de o autor já falar do amor de Charlus com toda a naturalidade, embora noutras passagens o denomine de vício. No entanto, a paixão de Charlus e Morel desembocará numa curiosa tempestade, desencadeada pelas intrigas palacianas desta aristocracia que Proust mostra admirar mas que não deixa de viver mergulhada na maledicência, nas aparências, na frivolidade…
No entanto, na voz das personagens, a posição face à homossexualidade continua a ser muito negativa, o que parece contradizer a condição homossexual de Proust. Não sei qual a posição dos especialistas mas talvez Proust apenas tenha pretendido exprimir a voz da opinião pública da época que considerava a homossexualidade como uma doença ou um vício.
Como sempre, a arte está por todo o lado neste livro. Para Proust, a arte é um prolongamento da vida. É por isso que a literatura, a música e a pintura estão sempre presentes na vida do narrador. A pintura de Elstir e a música de Vinteuil dão-lhe a paz que o amor nem sempre proporciona.
Finalmente, uma referência ao último capítulo que é um texto magnífico sobre o ciúme e sobre a forma como este pode mortificar quem o sente e quem dele é vítima.

segunda-feira, 6 de junho de 2016

Em Busca do Tempo Perdido - vol. 4 - Sodoma e Gomorra - Marcel Proust



O título deste quarto volume – Sodoma e Gomorra – exprime com violência o assunto que atormenta o autor/narrador: no papel de narrador e personagem principal, vemos um Proust que sofre o estigma da homossexualidade, não só pela pressão da sociedade como pela própria consciência, de onde provém o maior dos castigos. Este título remete não só para o pecado como também para o castigo; não o castigo legal mas o da consciência; não é por acaso que o narrador se refere à homossexualidade como “o vício” e aos homossexuais como “os invertidos”. Obviamente, isto não exprime a opinião de Proust sobre o assunto mas sim a opinião generalizada na sociedade em que está inserido. Aliás, uma das caraterísticas desta narrativa é que o narrador nunca emite juízos de valor. Mas os personagens homossexuais, como o barão de Charlus, martirizam-se pela sua condição de “homem-mulher”. No entanto, eles são muitos e por vezes escondem-se no meio da sociedade. Esta é uma das mensagens que Proust quer transmitir: os homossexuais não são casos isolados e excecionais.
O Sr. de Charlus é o principal personagem homossexual e é notável a forma como Proust constrói e carateriza este fortíssimo personagem; ele revela uma dupla personalidade que se justifica pela sua dupla condição: o homem social mulherengo, socialmente bom sucedido como bon-vivant e por outro lado o “homem mulher” escondido, que só se revela aos seus pares. Esta dualidade justifica também o seu caráter dúplice: simpático e altruísta mas por vezes terrivelmente irascível e profundamente preconceituoso, por exemplo em relação aos judeus.
A ascendência judaica de Proust explica, talvez, a forte presença do tema nestes romances; o caso Dreyfus, em voga na época, bem como o consequente antissemitismo continuam na ordem do dia neste volume. A opinião sobre o assunto na alta aristocracia depende menos da eventual culpabilidade de Dreyfus do que do preconceito – ser a favor de Dreyfus é imoral; é uma tomada de posição contra a sociedade. Aqui, tal como na questão dos homossexuais, em vez de emitir uma opinião, o autor dá voz aos que dele discordam (anti homossexuais e antissemitas) deixando que eles próprios revelem a falibilidade dos seus argumentos.
No seu papel de heterossexual o narrador faz renascer o seu fascínio por Albertina. Os seus delírios, os seus dilemas interiores, as suas hesitações, a sua insegurança quase crónica, são elementos que fornecem à prosa de Proust momentos sublimes, principalmente nos últimos capítulos do livro; é genial, notável, brilhante, a forma como Proust nos descreve a mente e os sentimentos inseguros do narrador, de tal forma que para o leitor se torna quase natural que o narrador diga que é imprescindível cortar relações com Albertina para meia dúzia de páginas depois, no final do romance, concluir que é imprescindível casar-se com ela.
Nos momentos que passa sozinho, as longas reflexões do narrador debruçam-se muitas vezes sobre o tema do devir e do passado, como que justificando o título da obra; de como o tempo condiciona a vida; de como nos deixamos encaminhar por situações que relativizam o tempo – porque o “aceleram” quando o prazer impera e porque o “atrasam” quando a sorte não sorri ao nosso destino. Um outro aspeto curioso neste quarto volume é a introdução na narrativa de um certo sentido de humor, principalmente nas descrições da vida social dos salões, onde as famílias rivalizam entre si, criando situações e diálogos bastante caricatos.
Enfim, este quarto volume é até agora aquele que mais me deleitou pela objetividade da escrita acompanhada por uma notável profundidade dos assuntos tratados, convidando sempre à reflexão.

quarta-feira, 1 de junho de 2016

Em Busca do Tempo Perdido - vol. 3 - O caminho de Guermantes - Marcel Proust


Comentário:
Este volume apresenta-nos já um narrador totalmente adulto; as paixões juvenis, por Gilberta e por Albertina parece terem ficado para trás. Há neste livro uma visita de Albertina que nos revela um amor sem compromisso mas também sem laços fortes – o encontro limita-se a beijos na face. 
A amizade por Saint-Loup, por seu lado, fortalece-se, mas o narrador não esconde o interesse que ela envolve; na verdade, ele utiliza essa amizade para chegar perto da senhora de Guermantes, que é uma espécie de ídolo. A partir daí, quase todo o volume é dedicado à descrição da vida social na alta aristocracia. Se nos volumes anteriores ainda era visível alguma crítica social, aqui fica bem clara a admiração entusiasmada do narrador por essa alta sociedade, essencialmente nas pessoas da Sra. De Guermantes e na marquesa de Villeparisis. 
Antes de “mergulhar” nesta alta sociedade, Proust descreve-nos a relação de Saint-Loup com a sua apaixonada, Zezette. Esta, tal como Odette no primeiro volume, é apresentada como a mulher pérfida, malévola, capaz de torturar psicologicamente o apaixonado e de aproveitar as suas fraquezas em proveito próprio.
Depois o autor presenteia-nos com centenas de páginas dedicadas à alta aristocracia, com um enfoque muito acentuado no salão da Sra. de Guermantes. Se, por um lado, podemos queixar-nos de uma prosa demasiado enfática que se torna mesmo fastidiosa nessas descrições, por outro lado, ficamos necessariamente deleitados com a imensa capacidade descritiva do autor que não precisa de um enredo muito emocionante para manter a atenção do leitor.
A expressão que ainda hoje se usa “conversa de salão” para designar um diálogo sem grande conteúdo tem provavelmente origem nestes salões da velha nobreza onde, na ausência de meios de comunicação social, se conversava ao serão. O salão da Sra. de Guermantes é-nos apresentado como um local onde reina a inteligência, ao contrário de outros salões onde a maledicência tinha lugar de destaque. A duquesa era uma mulher inteligente e culta; possuía até uma espécie de inteligência superior a que chamavam “espírito”. A própria personagem principal, que é também o narrador, como que se ofusca perante a preponderância da duquesa na narrativa.
Ao longo de todo o livro o caso Dreyfus toma um lugar importante; trata-se de um processo judicial onde um judeu era acusado de traição à pátria e que se revelou mais tarde uma fraude, uma vez que a acusação se baseou em documentos falsos. Mas o caso despertou uma onda de xenofobia que dividiu a França e é nítida neste livro a tomada de partido da aristocracia contra Dreyfus, numa clara manifestação de anti-semitismo; mesmo pessoas inteligentes como a duquesa de Guermantes aceitavam a inocência de Dreyfus mas não deixavam de, socialmente, manifestar o seu anti-semitismo.