terça-feira, 28 de agosto de 2007

O Velho que lia Romances de Amor - Luis Sepúlveda

Não se trata de uma obra de grande fôlego, a julgar até pela sua brevidade: 121 páginas que o Circulo de Leitores complementou, nesta antiga edição, com o conto “Mundo do Fim do Mundo”. Mas as limitações da obra não se reduzem ao factor “quantidade”. Não há aqui um propósito de escrever um romance mas apenas um conto ilustrativo da importância da preservação da floresta amazónica. O livro, dedicado a Chico Mendes não tem grande mérito em termos de criação literária. Tem, isso sim, uma mensagem importantíssima: ninguém consegue vencer a natureza. Podemos e devemos viver com ela mas nunca contra ela. Os animais e os elementos, ao oongo do livro, como que “troçam” dos homens, brincam sadicamente com eles antes de, invariavelmente, desferirem o golpe final. O convívio com a floresta, protagonizado pelo velho José Bolívar Proaño, é visto como um acto de submissão do homem à natureza. Proaño não tem medo da floresta. Tem-lhe, isso sim, um imenso respeito. E só esse respeito lhe permite viver feliz e em comunhão com animais ferozes e todo o tipo de perigos. Mau grado as contínuas ameaças dos exploradores americanos e das autoridades políticas sul-americanas, os bichos e os índios sobrevivem e triunfam. A escrita é simples e muito bem-humorada. Um estilo delicado e fácil que permite uma leitura rápida e agradável. As personagens, tipicamente sul-americanas, permitem ao autor introduzir deliciosas rábulas de humor quando confrontadas com a civilização distante que só conhecem por testemunhos indirectos. É o caso das deliciosas interpretações que os habitantes de El Idílio fazem de uma descrição da cidade de Veneza. Proaño, um velho viúvo solitário lê romances de amor para enganar a solidão mas também porque prefere a distância em relação a esse mundo “civilizado” que ele não gostaria de conhecer. O sonho é sempre preferível à realidade. Os índios (os Xuares, com quem Sepúlveda chegou a viver) são descritos de uma maneira muito simpática, seguindo o velho padrão do bom selvagem que vive feliz em comunhão com a natureza. Em suma, um livrinho muito agradável que compensa a falta de riqueza literária com a ludicidade da escrita e o valor de uma mensagem que, cada vez mais, devemos ter presente.

segunda-feira, 27 de agosto de 2007

Boa Tarde às Coisas Aqui em Baixo - António Lobo Antunes

A leitura como um jogo. Um desafio e uma construção. Um passeio literário que transporta o leitor para o verdadeiro prazer de ler. Eis o verdadeiro Lobo Antunes. Memórias nostálgicas de África, um tema quase obsessivo em Lobo Antunes. Mas também uma perspectiva crítica mordaz á forma como Portugal procurou tirar de África, a todo o custo, os seus melhores recursos, mesmo à custa de vidas humanas, barbaramente desperdiçadas. Deambulando entre uma escrita profundamente melancólica e um sentido de humor discreto mas eficaz, o Autor presenteia-nos com uma obra complexa mas de uma qualidade literária apenas ao alcance desse pequeno grupo de escritores a que podemos chamar “génios”. Agentes mais ou menos secretos, portugueses, cobiçosos, meros paus-mandados de uma cobiça maior, à procura de alvos difusos. Personagens vulgares, joguetes do poder viajam para Angola, sempre com o mesmo fito: os diamantes, réstia valiosa de um poder decrépito mas sempre desumano. Os Portugueses, os cubanos, os americanos, sempre os americanos, juntos numa amálgama de desespero e ambição. Vidas que se perdem ao serviço de uma causa dita maior. Seabra, Migueis, Morais, Gonçalves, Tavares, ati-heróis, desgraçados ambiciosos e manipulados são gente como nós, gente simples, vítimas de um mundo onde reina a desumanidade. Manipulados pelo misterioso “serviço”, herdeiro de uma colonização mal desfeita, os seus enviados são consecutivamente impedidos de regressar a Portugal. A terra de Angola, vermelha de sangue, funciona como uma força de atracção que os impede de regressar. O romance é apresentado em três livros com prólogo e epílogo. O estilo inconfundível de Lobo Antunes, com a multiplicidade de narradores, envolve o leitor numa trama complexa mas apaixonante. Numa obra com 573 páginas, é espantosa a forma como o autor conduz o leitor a um ritmo de leitura vertiginoso. Na verdade, a escrita de Lobo Antunes, segue a velocidade do pensamento: temas que se misturam, personagens que se multiplicam, enredos que se entrelaçam de tal forma que é ao leitor que cabe compor as peças do puzzle. Dominando como ninguém a língua portuguesa, Lobo Antunes, na sua característica modéstia, lamenta-se constantemente da falta de palavras para descrever situações e sentimentos. Curioso facto, este: um dos maiores escritores de sempre da língua portuguesa, lamenta-se da falta de palavras! A explicação é simples: se bem que a máquina institucional que submerge os personagens seja imensa, e por mais simples e vulgares que sejam as pessoas, o seu interior, os seus pensamentos e sentimentos são sempre imensos. Neste sentido, poderemos talvez adjectivar a escrita de Antunes como intimista: parece haver um esforço incontido de escalpelizar ao máximo todo o espírito humano. Mas o ser humano é tão grande e profundo que as palavras não chegam. Nem ao génio. O epílogo, escrito sob a forma de uma redacção escolar infantil, é um texto de uma excelência literária espantosa. Vem ao de cima a crítica da ambição e do poder e todo o humanismo que caracteriza a escrita de Lobo Antunes. Para ler, reler, guardar e mais tarde reiniciar o ciclo.

sexta-feira, 17 de agosto de 2007

Ontem não te vi em Babilónia - António Lobo Antunes

Este livro, às vezes, é como que um bailado de pensamentos, ondulando suavemente entre as páginas, percorrendo linhas e dançando perante os nossos olhos; saltitantes, esvoaçando para dentro dos nosso próprio cérebro, pensamentos que se misturam (os nossos e os dos outros, das personagens e do autor) num livro que se faz e refaz a cada instante, num imenso puzzle a construir por quem lê porque o autor, esse, já fez a sua parte. Um livro onde nunca nada está acabado; nem as frases, nem as ideias, nem a descrição, que narração não importa. Outras vezes, este livro é o turbilhão das dores e angustias, esse somatório desordenado a que alguns chamam sofrimento. Bocados de humanidade. Tempestades de dor, é o que é! Emaranhados confusos de sonhos e pesadelos, cores impetuosas de um quadro surrealista, talvez de Dali, manchadas de sangue e de lágrimas, luzes perdidas no escuro onde se pode ler a vida. Vida entre sonhos, fantasmas, ilusões, fantoches, trapos de bonecas, muros e grilhões de Peniche, onde a maré afoga o sonho. Dois, quatro, oito, dezasseis (não interessa) personagens evoluem numa única noite de insónia e vão passando, à vez, pelo palco da vida, das letras que deciframos. Muitos narradores, uma única noite de insónia. Insónia de cada um, uma noite/vida que é de todos (personagens, autor, leitor – sim, o leitor a tomar parte no banquete da insónia) emaranhados numa única solidão, num contar de tempo que pouco importa, duas quatro, oito, dezasseis vidas perdidas; duas, quatro, seis, oito, horas tanto faz, vidas rasgadas por sonhos/pesadelos, lutas, derrotas, um tempo que não interessa, um país que quase morreu ou quase viveu (riscar o que não interessa). Memórias sombrias, cinzentas, lentas, tortuosamente lentas de um cárcere chamado alma, ou vida, ou passado, também não interessa, o que interessa sim é a esperança – isso, a esperança, isso de que o livro não fala, isso de que o António se esqueceu…… pois……Foi de propósito, não foi, António? Porque isso não existe…… Existe a morte. E a pior de todas elas: a morte na vida; uma morte, uma vida, dezasseis vidas, uma noite – o escuro. Uma frase final: linha 13 parágrafo talvez terceiro, página 479: “porque aquilo que escrevo pode ler-se no escuro”; uma verdade (ou mentira, tanto faz, o leitor é que sabe); talvez verdade na medida em que no escuro se lê o pensamento e é disso que é feito este livro inteiro – 479 páginas de dor, desalento, sofrimento sem redenção, personagens que não heróis, enredo não estória, tramas confusos como pensamentos que se misturam e um leitor que não sabe a quantas anda porque assim é a vida e, muito mais, assim é quem pensa, quem sente as dores de viver. 479 páginas apenas mas que continuam. Talvez na página 1, num ciclo de gerações que não acabam na noite, que sobrevivem na insónia e se multiplicam na aurora. Porque a insónia é eterna. Uma prisão, uma macieira, um quarto de não dormir, pouco importa quem escreve, pouco importa onde (algures a montante da morte), Babilónia, Lisboa, Évora, Peniche, riscar o que não interessa, algures onde tu não estás, onde talvez nunca ninguém tenha estado, nalgum sítio perdido a que alguém possa um dia ter chamado felicidade, que é uma espécie de luz dos planetas extintos. O que fica, afinal? Talvez o génio. A arte de embalar o leitor no pesadelo. António Lobo Antunes e nós à espera da página 480.

quinta-feira, 16 de agosto de 2007

As Loucuras de Brooklyn - Paul Auster

Antes de mais, uma chamada de atenção para o facto de o título original ser muito mais sugestivo: The Brooklyn Follies. No entanto, a palavra "Follies" é, como se compreende, de difícil tradução, pelo que se compreende a solução adoptada ("Ilusões"). Aliás a tradução do habitual tradutor de Auster para a ASA (Pires de Lima) parece-me muito boa. Pelo menos muito atenta, com notas de rodapé muito úteis. As Loucuras de Brooklyn confirma a fixação de Auster num estilo preponderantemente lúdico e narrativo. Atingindo a maturidade como escritor, parece ter neste romance atingido aquele ponto em que já não precisa de inovar. É, por isso, talvez, o romance mais bem conseguido deste nova-iorquino que não norte americano (palavras suas). É, seguramente, o seu livro politicamente mais interventivo e comprometido desde a Triologia de Nova Iorque. Todo o pano de fundo é preenchido pela Nova Iorque dos anos 2000 e 2001: desde a reeleição de Bush à tragédia do 11 de Setembro. Fica mais uma vez clara a revolta do autor perante os caminhos sórdidos e absurdos da política norte-americana, não hesitando em deixar clara a fraude eleitoral cometida pelo partido republicano. Mesmo assim fica a ideia de que Nova Iorque pré-11 de Setembro é um sítio feliz. Magnifica a descrição da gente simples da grande maçã, que Auster admira profundamente. Aí reside grande parte da genialidade deste livro: a maneira eficaz como se conta histórias simples, de gente simples. Neste romance, ao contrário do habitual nos livros de Auster, o protagonista não é escritor. Nathan Glass é um apaixonado pelos livros que, na fase final da sua vida, vítima de uma doença grave decide mudar-se para Nova Iorque a aí procurar um final de vida tranquilo. Mas não é tranquilidadde que ele encontra; encontra os problemas e as peripécias de gente simples a quem acontece um pouco de tudo. Envolve-se com personagens estranhas mas autenticas, quase diria estranhamente reais: homosexuais, assassinos, pobres desgraçados de minorias étnicas, ricaços desprovidos de ética e inteligência e um sobrinho vítima da vida que lhe reabre a porta da família e o enreda em novos laços de ternura que Glass julgava já impossíveis de recuperar. É o ranascer para a vida, é a redenção sempre presente nos livros de Auster: a solidão como caminho para a felicidade, mas sempre uma felicidade difícil, só conseguida por árduas lutas interiores e perante os outros. A afirmação do ser humano como único, só é possível perante uma sociedade que, à partida, o despreza. Mas, neste livro, parece haver um pouco mais de luz do que nas obras anteriores, mais sombrias e pessimistas. Um final feliz na medida do possível, compensam a tragédia que persiste, a espaços, na vida.

O Livro das Ilusões - Paul Auster

Nesta obra, o melhor escritor norte-americano da actualidade põe em cena todo seu conhecimento e sensibilidade cinematográfica, herdadas da sua vasta experiência no género, como realizador e argumentista. Aliás, não deixa de ser curioso que o filme baseado neste livro, a estrear em breve, tenha sido rodado em Portugal, o que prova mais uma vez a predilecção de Auster pelo nosso país. Neste livro, narra-se a vida de um homem que, depois de passar pela dolorosa experiência da morte dos filhos e esposa, se dedica por inteiro à escrita, nomeadamente à reconstituição da vida de um génio do cinema mudo, Hector Mann, misteriosamente desaparecido. Na primeira fase do livro, é tocante a forma como Auster sente e exprime a crueza do sofrimento humano e da solidão. A revolta invade o próprio leitor, perante a crueldade do destino do personagem principal. A partir daí, toda a escrita de Auster embeleza de forma genial a passagem gradual da tragédia à procura da motivação pela vida. A solidão dá lugar à esperança. A tristeza dá lugar ao frémito que impede de pensar, esse "stress" que dá à vida aquela velocidade que nos aliena mas que, ao mesmo tempo, nos anestesia perante a tragédia. Tal como noutras obras de Auster, também aqui perpassa a ideia de que não pode haver felicidade sem sofrimento. Assim, David Zimmer procura uma espécie de redenção perante o passado e fá-lo através da escrita. Mais uma vez, um tema querido a Paul Auster: o próprio acto de criação literária; a envolvência do escritor na obra criada e a amálgama entre o criador e a criação. No final fica o optimismo mau grado o tom trágico que percorre toda a obra. Há qualquer coisa de mágico em Auster: a vida é dolorosa mas preciosa. As alegrias são efémeras mas singulares. Estas ideias, tão caras a grandes escritores que, sem dúvida influenciaram Auster (Dostoievski, Kafka…) são envolvidas numa das maiores qualidades do autor: a sua magnifica vocação de contador de histórias; a sua capacidade de expressão narrativa faz dos seus livros magnificas fontes de entretenimento, retirando a literatura daquele aspecto enfadonho e pseudo-intelectual em que, infelizmente, muitos autores actuais se sepultam.

quinta-feira, 2 de agosto de 2007

A Estrela de Gonçalo Enes - Rosa Lobato Faria

Trata-se de uma obra leve e descontraída sobre a vida e aventuras de dois personagens quase esquecidos da História de Portugal, mais especificamente da época das descobertas. São personagens reais se bem que quase todo o enredo seja ficcionado. Gonçalo Enes ficou na História pela descoberta das grutas de Tassili N’Ajjer. Trata-se de um jovem órfão de pai nascido e criado na aldeia algarvia de Bensafrim. Encantado pela estrela Sirius, que o ilumina e encanta durante toda a vida, o jovem Gonçalo, desiludido por um amor impossível, abre o seu destino às incríveis aventuras do Império que El-rei D. Afonso sonhava construir. Pelas aldeis indígenas de àfrica, pelas cidades encantadas de Marrocos, pelas areias misteriosas do deserto, Gonçalo leva consigo o espírito de aventura e coragem que transformou este pequeno país num mundo inteiro de esperança e riqueza. Fica, desta “estória”, o encanto de um tempo ido, em que a pobreza se enganava com sonhos grandes, do tamanho do Império. Um liuvro belo e fresco, descontraído, sem ambições mas que encanta pela extraordinária simplicidade e singeleza da escrita de Rosa Lobato Faria; uma escritora que tem o dom de encantar pela sua escrita simples e pura. Gonçalo, mal-amado e desprezado, vive no sonho, mas um sonho que o faz feliz. A amizade, a camaradagem, a fidelidade ao sonho são valores que fazem dele um herói, mesmo que esquecido pela História, como tantos outros que, anonimamente, construíram as páginas mais brilhantes da nossa história.

quarta-feira, 1 de agosto de 2007

Memórias das Minha Putas Tristes - Gabriel Garcia Marquez

Com as suas singelas 105 páginas, este livrinho lê-se facilmente em poucas horas. Uma leitura leve, divertida mas nada fútil. O início a obra é, no entanto, propositadamente enganador, de forma a quase assustar o leitor perante o choque destas palavras: “No ano dos meus noventa anos quis oferecer a mim mesmo uma noite de amor louco com uma adolescente virgem”. O choque é brutal mas passageiro; na mente do leitor paira o espectro da pedofilia e, por um momento, duvidamos da sanidade mental do autor. Mas, à medida que as páginas vão evoluindo, vamo-nos a percebendo que a prosa se transforma num belo poema sobre a vida. Uma reflexão aligeirada pelo prazer de viver mas sempre humana, sempre profundamente humana! Aos noventa anos, o narrador, escritor e jornalista de profissão, nunca tinha tido sexo sem pagar. Mas o momento de maior loucura, já mergulhado na velhice, é o momento do amor. Pela primeira vez na sua vida, aprende a amar. Mas um amor singelo, puro, sem sexo nem qualquer espécie de despudor. Pela prmeira vez, ele é feliz. Esta “aparição” é o motivo para uma reflexão profunda sobre o sentido da vida. Os obstáculos imensos que se interpõem entre ele e a sua jovem amada poderiam, à partida, contribuir para um tom negro e pessimista do livro. Mas não; todo o enredo tem a ver com a alegria de viver, com o prazer de estar vivo e usufruir do mundo. Ao longo da reflexão que o narrador faz sobre a sua vida prestes a terminar, não há um lamento, não há um arrependimento, como se tudo o que acontece tenha a marca da inevitabilidade, mas sempre num sentido positivo, de gratidão perante o destino. Tudo é celebrado, nada é lamentado.

segunda-feira, 16 de julho de 2007

Limpeza de Sangue - Arturo Pérez Reverte

Aí está um verdadeiro romance de capa-e-espada! Admirador indefectível de Alexandre Dumas, Reverte presenteia-nos com um livro de aventuras bem refrescante, divertido e emocionante. A época histórica escolhida é bem marcante para nós, portugueses; é a época de Filipe IV, o terceiro de Portugal, de quem nos livramos em 1 de Dezembro de 1640. O enredo passa-se em 1621, quando Filipe IV era um jovem rei sem “mão” para governar um país dominado por interesses e intrigas, onde pontificava a terrível Inquisição e o nosso conhecido conde duque de Olivares, um fidalgo talvez mais poderoso que o próprio rei mas preocupado, acima de tudo, em sugar as finanças portuguesas para financiar as guerras na Flandres e Holanda. O livro é o segundo de uma trilogia que descreve as aventuras do capitão Alatriste (referência ao incontornável Cervantes) com o pano de fundo na terrível guerra da Flandres, onde combatiam as tropas de Filipe IV e onde o nosso capitão viveu batalhas terríveis. Esta obra não é uma obra-prima. Não tem “fôlego” para isso. Nem tinha que ter. O seu propósito não é afirmar as grandes qualidades de Reverte, já confirmadas noutras obras, mas sim o de divulgar uma época fantástica da história de Espanha, em que este país dominava o mundo. Estávamos no período áureo do Império Espanhol. Ao mesmo tempo, pretende-se mostrar que há determinados males que não são de hoje: a corrupção, a tendência para uma religiosidade falsa como Judas, a corrosão do poder político e os desmandos daqueles que se dizem a “elite”, mais virada para a aparência do que para a verdade. São fenómenos que permanecem mas têm raízes históricas muito bem explanadas por Reverte. Aliás, o grande mérito desta obra é o conhecimento profundo da realidade histórica que reverte revela. O fenómeno da Inquisição, por exemplo, é explanado com grande significado. O recurso a este tribunal tão desumano e hipócrita foi uma das razões para um certo atraso estrutural do sul (católico) da Europa, ao provocar a fuga de talentos e dinheiros para a Holanda, Inglaterra e outros países do Norte. Esta preocupação pelo “pano de fundo” leva o autor, muitas vezes a dar mais importância à “paisagem que ao retrato”; ou seja, a descrição da época por vezes ofuscando o próprio enredo, a história que pretende contar. Enfim, trata-se de um livro agradável, de fácil e rápida leitura, leve e simples. Um excelente exercício de divulgação histórica, bem apropriado para uma leitura de férias.

sexta-feira, 6 de julho de 2007

O Meu Mundo não é Deste Reino - João Melo

O Humanismo de Vitorino Nemésio, o cheiro da terra de Miguel Torga e o mundo fantástico de Garcia Marquez encontra uma síntese perfeita nesta obra de João de Melo. Como Nemésio, profundamente ligado às raízes açorianas, o autor lê e descreve com entusiasmo e envolvência o viver e o sofrer de gente miserável, à procura de asas para voar sobre outros mares mas sempre peada, agrilhoada por poderes temporais que a sugam e subjugam. Cabem neste domínio o padre Governo e o Regedor Guilherme José. Como em Torga, a terra comanda a gente. O crescer da sementeira é o viver das gentes; a respiração dos animais confunde-se com a das pessoas. A terra está por todo o lado, até no chão das casas. E há um Deus, um ser supremo que ninguém conhece a não ser por sombras medonhas como a do velho e egoísta padre Governo. Como em Garcia Marquez, o fantástico cresce ao longo da obra. Esta começa por referir, em tom quase historiográfico, o povoamento da Ilha de S. Miguel para terminar numa espécie de espiral de fantasia, com homens que comem e vomitam ratos, gentes esfomeadas que pilham cadáveres e um Messias que ressuscita dos mortos para anunciar a revolução. Começando por um título (um paratexto que logo avisa o leitor para o fantástico que envolverá a obra) até ao epílogo escrito em maiúsculas, a obra está povoada de uma linguagem à beira do barroco. Por vezes, o prazer de ler, de saborear a musicalidade das frases eleva o leitor acima do conteúdo, criando nós próprios um universo fantástico julgado impossível. Navegando entre um neo-realismo latente e um neo-barroco formal, João de Melo cria assim uma obra de arte completíssima, onde a forma complementa um discurso claro de revolta contra a opressão, contra uma fome que não é só de pão mas também de liberdade.

quinta-feira, 5 de julho de 2007

Retrato do Artista Quando Jovem - James Joyce

O Retrato do Artista Quando Jovem, é o primeiro romance de James Joyce. Stephen Dedalus é o herói da obra, alter ego do autor. Daí o seu carácter marcadamente autobiográfico. O nome atribuído ao herói, Dedalus, é uma referência óbvia ao mito helénico. Tal como o herói grego, também Stephen queria voar. Assim como Joyce. Os três procuraram sempre a libertação, por entre uma realidade mesquinha e atrofiadora. O livro relata a juventude de Stephen, passada entre realidade profundamente marcantes na personalidade de Dedalius/Joyce: o colégio de Jesuítas, com os seus métodos espartanos de ensino, a cidade de Dublin, suja e dominada pela eterna querela política face à dominação inglesa e uma família abastada mas que, gradualmente, cai na ruína. A perpétua luta pela independência da Irlanda obcecava os seus concidadãos. Mas Dedalus coloca-se para lá dessa realidade: “Quando a alma de um homem nasce neste país, lançam-lhe logo redes, para a impedir de voar. Fala-me de nacionalidade, de língua, de religião; eu vou tentar voar para lá dessas redes”. E mais adiante: “A Irlanda é uma porca velha que devora a sua ninhada”. Perante tudo isto, o jovem Dédalus anseia por voar mais alto. Procura nos poetas, vasculha em Aquino, refugia-se nas profundezas do saber, mergulha na lama de Dublin, entre poetas e prostitutas, submerge no mais profundo misticismo jesuítico mas nada lhe permite construir as suas asas de cera. O seu mundo seria outro. Mas, para lá chegar, foi preciso viver. É desta vida multifacetada e mortificada que Joyce dá conta, numa obre genial em termos estéticos. Ao longo do livro evolui uma escrita ao alcance apenas dos mais geniais dos escritores. A beleza das palavras, a melodia da narração, bem respeitada por esta tradução, eleva bem alto o génio deste escritor que cuidava os seus textos como se preciosidades fossem. E eram! O estilo é profundo, voltado para o interior, para as profundezas da alma. Os diálogos, curtos e raros servem apenas para espelhar a alma de Dedalus, usando o monólogo interior de forma quase sistemática e inovadora para a época. Por toda a obra é manifesta a inquietude de Joyce perante os dilemas mais profundos da vida e a função do pensamento religioso. Uma terrível guerra interior, travada entre a moral católica e a atracção da realidade mundana perpassa a mente de Stephen de forma impiedosa e marcante. No final dá-se o triunfo da vida; o triunfo de um mundo sobre o qual as asas de Dédalus hão-de pairar para sempre.

terça-feira, 26 de junho de 2007

O Estrangeiro - Albert Camus

Meursault é um homem normal; tão normal que, por isso, será condenado. Percorre a vida sentindo-a como ela é; enfrentando-a com honestidade, sem subterfúgios, sem alegrias fáceis nem dramas inventados. “Tanto me faz” é uma frase-lema de Meursault. A vida é o que é, nada vai ser alterado pela sua vontade. É esta a atitude de um homem normal. O mundo de Meursault não é feito de afectos; Salamano vive com um cão velho e lazarento que insulta metodicamente. Mas é o desaparecimento do cão que lhe desperta a emoção. Morreu a Meursault. Ele não chorou. A morte, afinal, é independente das vontades e dos afectos; tem vida própria e nada a poderá deter no cumprimento da sua obrigação para com os mortais. A mãe era mortal. Por isso não chorou e foi condenado. Raimundo realiza-se espancando as mulheres. Meursault mata o árabe quase com indiferença. A vida cumpria um traçado que ninguém, nem mesmo ele, poderia desviar. Não adiantava esconder a verdade nua e crua da realidade. Por isso não valia a pena esconder nada. Mas a verdade de Meursault ameaçava a sociedade! É que, afinal, há os outros! Aqueles para quem a vida não é aquilo que vemos e fazemos; aqueles para quem a vida é um jogo que se disputa entre adversários. E Meursault é um desses adversários: alguém que irá satisfazer a ânsia de dominação, o instinto de poder dos donos da justiça, essa construção humana destinada a legitimar as hierarquias. Meursault, o estrangeiro, descobrirá de forma dolorosa que o poder é de quem joga, não de quem vive. A justiça castigá-lo-á por não fingir. O fingimento, afinal, fazia parte do jogo. Meursault, afinal, devia ter chorado! Devia ter mostrado arrependimento! Devia ter fingido. Tinha sido esse o seu crime. Mas ele era um estrangeiro; um homem normal. Uma das maiores obras da grande literatura existencialista francesa, O Estrangeiro é um livro sobre a hipocrisia do ser humano que utiliza os sentimentos como forma de manipulação e de conquista do poder. É um grito de revolta contra uma sociedade que oprime aqueles que defendem a verdade até ao fim; de grande conteúdo filosófico, trata-se de um marco na literatura do século XX, sem deixar de ser uma história simples e acessível a qualquer leitor. Sem duvida, uma obra-prima da literatura universal.

segunda-feira, 25 de junho de 2007

O Filho de Ester - Jean Sasson

O Filho de Ester é um livro contraditório: como testemunho histórico, é excelente. Como o romance cai no mais decepcionante esquema de novela passional, sem surpresas, sem grandes inovações e com um ritmo de escrita previsível. Mas esta obra vale sobretudo pela dimensão histórica, pela forma clara, embora nitidamente comprometida como envolve numa narrativa única as duas grandes catástrofes do século XX: a segunda guerra mundial, ou melhor, o Holocausto e o eterno conflito israelo-árabe. A acção decorre em várias “frentes”, correspondendo à história de três famílias. Assim, a acção desenrola-se em Paris, na comunidade judaica em França antes da 2ª Guerra Mundial, na comunidade judaica da Polónia, na Alemanha do pós guerra e, depois, percorrendo a segunda metade do século XX, na Palestina, em Israel e no Líbano. Ao logo de toda a obra, o rigor histórico não deixa de estar sempre presente. Mas o tom predominante do livro é um imenso melodrama que ilustra a barbárie nazi e as carnificinas que se desenrolam no médio oriente. A luta do povo palestiniano é encarada por Sasson de uma forma de justa resistência perante a ocupação israelita. Esta, por sua vez, é vista como uma consequência lógica da opressão de que os judeus foram vítimas ao longo da História e que culminaram com o Hocausto nazi. Trata-se, em suma, de uma obra bastante aconselhável a quem queira compreender melhor o conflito do médio oriente, escrita com bastante rigos, mas deixa muito a desejar em termos literários. Embora bem escrito e com um ritmo bastante aceitável, o enredo é sempre demasiado previsível.

sábado, 12 de maio de 2007

Clube Dumas - Arturo Pérez-Reverte

A surpresa, o imprevisto, o suspense, dão a este livro um tom policial que está longe de limitar a obra a essa dimensão. Na verdade trata-se de um misto de romance histórico, policial e romance clássico, muito inovador e complexo. No entanto, esta complexidade não deixa nunca que a narrativa se perca em emaranhados embaraçosos para o leitor, como tantas vezes acontece em escritores que procuram a complexidade como forma de, por si só, guindar a obra aos patamares mais elevados do sucesso. Trata-se de um enredo genialmente rico, onde a narrativa é sempre surpreendente e inovadora. A personagem principal, Lucas Corso é, logo à partida, um verdadeiro desafio à imaginação do leitor: um mercenário dos livros, um homem que procura fortuna na literatura, não através da escrita mas do livro como mercadoria, ou melhor, como preciosidade. Desta ideia de livro como tesouro artístico, Reverte inicia a narrativa num contexto típico de romance histórico: a missão de Corso é encontrar um livro queimado no século XVII juntamente com o seu impressor. A partir daí o Autor encaminha o leitor por um magnífico passeio pelas teias tenebrosas do santo Ofício, pelos caminhos tortuosos do comércio clandestino de livros e pelo mundo encantador dos amantes dos livros, aqueles para quem a vida só tem sentido entre estantes poeirentas. Este livro é, no fundo, um verdadeiro hino à arte de amar os livros. É o livro quem comanda o homem e determina a sua vida e a sua morte. Pelo meio podemos, com algum esforço, encontrar algo de menos genial nesta obra: há uma certa tendência para o cliché, ou seja, para a previsibilidade da aventura. Reverte segue, por vezes, caminhos aparentemente fáceis para prender a atenção do leitor. Mas não podemos esquecer nunca que a literatura também é diversão; e a arte também pode ser divertida. É nesse sentido que nos apresentado um herói que vive para os livros sem qualquer traço de erudição: ele é mais um malandro do que um erudito. Este aspecto dá um carácter mais leve ao enredo e o leitor que procura divertir-se coma leitura, agradece. Como nota negativa refira-se os numerosos erros de revisão nesta edição da D. Quixote.

quarta-feira, 2 de maio de 2007

A Herança do Vazio - Kiran Desai

Antes de tudo, este livro é um brilhante testemunho da História da India no século XX, nascida de um passado brilhante mas vítima da opressão e exploração europeia. A Indía foi sucessivamente delapidada por Impérios europeus: primeiro os portugueses, depois os franceses e holendeses, finalmente os Ingleses, os senhores da Civilização e da opressão. Mais uma vez, o tema tantas vezes debatido e sempre tão actual: o choque de culturas. A acção decorre na Índia pós-colonial onde ainda se debate a contradição entre o paradigma civilizacional inglês e a prevalência de uma cultura ancestral identificada com as raízes religiosas e mentais mas que, ao mesmo tempo, envolve um quadro socio-económico arcaico. A pobreza está por todo o lado, justificando um misto de ódio e admiração pelos ingleses: ódio por parte daqueles que lhe atribuem a causa de todas as desgraças, admiração por parte daqueles que se encontram revoltados perante o conservadorismo da sociedade tradicional indiana. Trata-se da relação colonizador/colonizado por detrás da luta entre a tradição e uma modernidade tão atractiva como decepcionante. Mas há algo mais que isso: o conflito entre a pobreza e a riqueza, o dilema entre a tradição e a modernidade, o pôr em causa dessa mesma modernidade; a dúvida entre o aceite e o imposto. Por outro lado, o conflito político; o dilema daqueles que serviram um senhor que se revelou opressor. E a América, sempre a América como pano de fundo de uma esperança apenas aparente. A revolta perante um mundo de desilusão; a vida destruída entre conflitos que se impõem de um exterior vasto e devorador: os ingleses mas também a fabulosa América que inebria e corrói. A liberdade conquistada e o choque brutal com um país onde a liberdade, frágil construção humana, deixa germinar outras guerras. As minorias. Os nepaleses e o desejo de libertação. A violência no reino da tradição. Este é um livro sobre a solidão. Sobre almas que pendem sob os Himalaias, dependuradas num destino fabricado noutras paragens, por outras gentes. A civilização, admirada nos odiados ingleses avassala este mundo de personagens humildes e pobres. Sim, porque aqui, nesta Índia à procura de identidade, nem os ricos são ricos: todos sofrem, mesmo que de solidão. Fica a escrita brilhante tirada das profundezas da alma. Uma escrita sentida, cuidada e pessoal que elevam esta obra às fronteiras do obra-prima.

terça-feira, 1 de maio de 2007

O Perfume - Patrick Suskind

Livro polémico, alvo de ódios e paixões, “O perfume” é, a meu ver, uma obra-prima. O herói, ou melhor, o anti-herói, Jean-Baptiste Grenouille, vive em função do olfacto. O enredo decorre entre os anos de 1738 e 1767, respectivamente anos de nascimento e morte do herói-vilão que protagoniza a obra. Assim, a obra situa-se nos tempos conturbados da Revolução Francesa, em que a realidade social do Antigo Regime é brutalmente destruída, em nome da modernidade. É nesse ambiente de violência mas também de fervor que Grenouille caminha na sua cruzada contra o desprezo, contra um destino que o condenava por, simplesmente, ter nascido no meio do peixe podre. Toda a sua vida gira em torno desse sentido tão desprezado quanto misterioso. Detentor de um dom ou maldição, o cheiro é o seu guia. Sobressai nesta obra carácter infra-humano de Grenouille num tom de hipérbole por vezes exagerada, como se a fronteira entre o homem e o monstro fosse tão ténue que se tornasse irreconhecível. Ele é, assim descrito, uma figura surrealista, a fazer lembrar um quadro de Dali: distorcido pelo seu tempo mas, principalmente, pelo seu carácter. A sua sensibilidade odorífica contrasta, porém, com a ausência de odor próprio, por oposição a uma cidade que parece viver em função do olfacto: a podridão e a miséria das ruas, em contraste com o perfume da burguesia. Assim colocado entre os dois extremos, Grenouille é o anti-herói num mundo crivado de ódio. Inebriado pelo perfume feminino divaga entre a paixão e a violência, entre o amor e a morte. A ausência de odor leva-o a procurá-lo incessantemente. A procura do odor é a procura da sua própria identidade. Um livro violento e triste, que se lê com paixão mas também com revolta, perante uma cidade-luz descrita como a cidade do fedor e perante um personagem abjecto mas terrivelmente humano: porque Grenoille procura apenas a paz de espírito. A sua paz.