terça-feira, 29 de julho de 2008

O Crime de Lorde Artur Sevile e Outros Contos - Oscar Wilde

Não deixa de ser surpreendente o fino e inteligente sentido de humor de Wilde ao longo destes contos, particularmente em “O fantasma de Canterville”. A comédia torna-se hilariante no confronto entre o fantasma de 500 anos e a família americana que, com o seu espírito capitalista americano, comprara o respectivo castelo. Para quem leu, por exemplo “De profundis”, essa carta dolorosa de um homem angustiado, não deixa de ser admirável este bom humor.
No conto principal, que dá título à edição, tudo gira em torno da estupidez. Ou melhor, de como a superstição se transforma em estupidez quando um homem se deixa conduzir por ela. Trata-se da história de um jovem aristocrata, pouco inteligente e supersticioso que procura cumprir a “profecia” de um quiromante, uma vez que tem o casamento marcado e não quer consumar o matrimónio sem “despachar” a profecia. Mas a tarefa não é nada fácil: o quiromante garantira que ele haveria de cometer um assassínio; o problema maior era encontrar um alvo.
Wilde que um dia afirmou que o único pecado é a estupidez, demonstra aqui um admirável espírito crítico ao qual não escapa uma sociedade burguesa sem ideias nem ideais, completamente dominada pela futilidade. O subtítulo deste conto (“Um estudo sobre o dever moral”) denota uma genial ironia acerca do conceito de moralidade: ser coerente com os princípios morais pode revelar-se uma armadilha fatal, quando eles estão assentes em crenças e hábitos.
Os dois contos finais são meros exercícios da fértil imaginação de Wilde. O último deles (“O Modelo Milionário”) demonstra uma faceta pouco conhecida de Wilde: a sua sensibilidade perante a solidariedade social e a filantropia.
A ideia geral que perpassa todos os contos é a dualidade e o confronto entre a aparência e a realidade no que toca à personalidade humana. Há sempre um desconhecido por detrás de cada rosto e o confronto com os outros dá-se sempre ao nível da aparência. Quando essa “máscara” cai, todos nós revelamos facetas antes insondáveis e o misterioso torna-se real.

domingo, 27 de julho de 2008

Gente de Dublin - James Joyce

A impotência perante a dureza da realidade, particularmente no que diz respeito às condições económicas, é o tema central desta obra, um dos primeiros livros do autor de “Ulisses”. A Joyce interessa sobretudo a vida da gente simples de Dublin, descrevendo-se uma cidade pobre e muito conservadora, factores que ditam o peso de uma realidade que oprime os seus personagens.
A tentação de sair da ilha é grande, mas o apego à terra é enorme. Para isso contribui uma mentalidade provinciana à qual Joyce aponta o dedo acusador. No final de cada conto, é a realidade que vence; é o costume, a normalidade, que prevalece sempre! No conto “Graça Divina” esta ideia assume uma forma muito curiosa e original: praticamente o conto não tem um final, na acepção habitual do termo; o encerramento da narrativa dá-se com a mensagem de um padre e tudo fica igual. O problema não tem solução, nunca se resolve, pelo que não há final.
O estilo utilizado por Joyce nestes contos é peculiar: as histórias não têm suspense, não se procuram artifícios para captar a atenção do leitor mas, na realidade, a beleza das palavras cumpre esse papel na perfeição. Nestes contos nada acontece de extraordinário. Mas, ao mesmo tempo, tudo é extraordinário: a realidade é sempre a mesma mas a beleza da escrita de Joyce encarrega-se de nos prender do princípio ao fim. Os primeiros contos são verdadeiramente ingénuos; histórias simples e com enredo quase pueril. Ao longo do livro vai crescendo o simbolismo e a “finura” das mensagens de Joyce. O álcool e a embriaguez, fenómenos integrantes do conservadorismo, estão quase sempre presentes, a contribuir para a vida atribulada e infeliz da maioria das personagens. No conto “Embriaguez” o tema é tratado de forma tão crua e directa que nenhum leitor consegue evitar a comoção. A própria religião, fenómeno tão importante na Irlanda, é outro elemento desse conservadorismo que o autor acusa.
Destaque finalmente para o último conto (“O morto”), que constitui uma formidável reflexão sobre a vida, a morte e o amor; não obrigatoriamente por esta ordem mas constituindo uma triangulação da qual ninguém consegue escapar.
Globalmente, esta obra é mais um conjunto de reflexões ficcionados do que um livro de contos na sua concepção tradicional. Tudo gira em torno de um povo que se limita a cumprir o seu destino, com as suas alegrias simples e as suas dores permanentes. Um obra escrita em tons de lamento mas de onde se eleva um estilo narrativo inovador, anunciando já James Joyce como um dos mais originais e marcantes escritores europeus da primeira fase do século XX.

terça-feira, 22 de julho de 2008

Salammbô - Gustave Flaubert

Trata-se de uma obra a todos os títulos notável. Depois da polémica com Madame Bovary, Flaubert procurou refugio no romance histórico mas nem por isso conseguiu a fuga desejada. Os seus críticos não lhe deram tréguas e se na obra anterior o haviam acusado de provocar escândalo, nesta houve quem o acusasse de sair demasiado da verdade histórica. Seja como for, a liberdade criativa justifica alguns desvios à verdade histórica.
Salammbô é o nome da filha de Amílcar Barca, célebre conquistador cartaginês. Durante as primeiras Guerras Púnicas, este general teve de contratar enormes contingentes de mercenários que depois se revoltaram contra Cartago. Após um festim comemorativo feito pelos comerciantes em homenagem às vitórias, um dos mercenários, chamado Mâtho, apaixona-se pela bela princesa Salammbô, a filha do general. Consagrada para o culto à deusa Tanit, esta conserva-se pura e virginal, desconhecendo a realidade mundana. Entretanto, tem início a revolta dos mercenários, por não terem recebido as prometidas recompensas, sendo Mâtho um dos seus principais chefes. Amílcar encontra-se fora da cidade, que é cercada pelos milicianos. Tomado por sua paixão desenfreada, Mâtho ocultamente penetra em Cartago, o que resulta no roubo do Zaïmph - o manto sagrado da deusa - e no qual nenhum mortal poderia tocar.
O retorno de Amílcar, marcado pela oposição dos seus conterrâneos, dá início a uma longa série de batalhas, vitórias e reveses… O final é surpreendente e apoteótico.
A imaginação incrível de Flaubert permite descrições notáveis dos ambientes da época. Os costumes, as roupas, os edifícios, as armas, tudo é belamente descrito num estilo muito cuidado. A estranheza dos costumes dos povos descritos é, aos nossos olhos, impressionante. Este aspecto leva o leitor a questionar-se sobre o ponto onde acaba a descrição histórica e começa a fértil imaginação de Flaubert.
As barbaridades cometidas pelos exércitos dão-nos uma noção de terror impressionante. À medida que a acção avança, os exércitos vão-se dizimando, mas os seres humanos que os alimentam parecem sempre renascer das mortandades, alimentando sempre a máquina impiedosa inventada pelo ser humano a que damos o nome de guerra.
Em contraponto com o terror, a riqueza! Impressionante a descrição dos tesouros de Cartago, nomeadamente o tesouro pessoal de Amílcar. Ao mesmo tempo, a eterna desigualdade entre os seres humanos, uma vez que as populações em geral passavam crises frequentes de fome. Um aspecto importante que parece realçar do texto é um certo europocentrismo, em voga na época, que considerava como bárbaro todo aquele que não comungasse dos valores europeus. Mas há uma certa admiração por esta “barbárie”. No final da obra triunfam os Deuses; esses mesmos Deuses que Flaubert descreve como impiedosos, vingativos, assassinos mesmo! Mas o triunfo dos Deuses talvez seja a vitória do destino. Por maiores que sejam as riquezas e as ambições, por mais valentes que sejam os homens, há sempre um destino a cumprir e nada podemos fazer para lhe fugir. Todas as guerras e todas as ambições de riqueza são inúteis.

segunda-feira, 14 de julho de 2008

A Dama das Camélias - Alexandre Dumas, Filho

Um amor desmedido e uma história trágica: eis os ingredientes obrigatórios de uma bela obra segundo os cânones do grande romance francês do século XIX. Neste livro, impressiona o exagero: do amor desmesurado de Armand, da doença trágica e quase inexplicável de Margueritte e de um ambiente social onde predomina o luxo e a depravação. Margueritte é uma cortesã que alimenta o luxo em que vive vendendo o corpo e a alma a fidalgos endinheirados que povoam a cidade de Paris na primeira metade do século XIX. Armand é um nobre de baixa renda, um jovem que, como muitos outros, procura viver da renda, deambulando pela cidade-luz até cair de amores por Margueritte. Esta, inexplicavelmente, abandona o luxo para se dedicar àquele amor caído não se sabe bem de onde.
No entanto, em breve se anuncia a tragédia, quando surge o famoso triângulo amor-ciúme-posse que conduz à desgraça. Embora com lágrimas e mais lágrimas ao longo de quase todo o enredo, tudo corre pelo melhor até se verificar que a renda de Armand não chega nem para os gastos mais elementares, acrescendo a ira do pai de Armand perante aquela relação com uma mulher cuja vida se situa completamente fora dos limites da decência. Vem ao de cima toda a história mil vezes contada da hipocrisia perante a vida pecaminosa destas damas que alimentam os desejos mais ardentes dos homens mas a quem é negada qualquer aceitação em termos morais. Uma coisa é ser amante, outra é ser mulher em todo o sentido do termo.
Todo o drama acontece quando Margueritte quer deixar de ser amante para ser mulher. A sociedade parisiense, perdida algures entre a moral burguesa e o diletantismo de um quadro mental de Antigo Regime, não aceita o fim da aparência. Tudo corre bem enquanto Margueritte mantém a aparência mesmo que todos conheçam a depravação em que vive. Para lá do amor exagerado e da tragédia quase surrealista a que conduz, fica o retrato de uma cidade onde os valores da própria Revolução Francesa parecem não ter penetrado. Por todo o lado, nobres diletantes vivem das rendas pagas pelo povo explorado e faminto, rendas essas que desbaratam em farras e orgias. É incrível como a tolerância, a liberdade, a igualdade e a fraternidade estejam ausentes de um cenário social que foi o mesmo dos revolucionários, algumas décadas antes.
Outro aspecto que impressiona nesta obra é o sentimento que o próprio Dumas parece colocar na escrita, como se a vivesse por dentro (carácter auto-biográfico?). Por mais inacreditável que seja aquela paixão, tudo se passa como se fosse o próprio autor a vivê-la e a senti-la. O próprio Dumas parece envolver-se num quadro moral beatífico, onde os sentimentos cristãos surgem exagerados e contraditórios.
Em suma, trata-se de uma obra cuja importância se prende mais com o testemunho histórico do que com a qualidade literária. Trata-se de um retrato deprimente de uma cidade perdida nas contradições de uma época e de um quadro social que fica algures entre o aristocrata e o burguês, entre o Antigo e o Contemporâneo.

segunda-feira, 7 de julho de 2008

A Música do Acaso - Paul Auster

A par de Mr. Vertigo, esta Música do Acaso é uma das raras obras de Paul Auster que segue uma linha bem definida; sem recorrer à sua técnica recorrente de histórias dentro da história, Auster desenvolve um enredo simples e linear. É talvez um dos seus livros mais singelos e menos “trabalhado”.
Escrito em 1990, na primeira fase do percurso literário do autor, aborda a história de um bombeiro nova-iorquino de nome Jim Nashe. Aliás a semelhança do nome talvez denote alguma referência ao músico americano Graham Nash que, além da brilhante carreira militar, foi um activista político nos anos 60.
Jim Nashe tal como o seu quase homónimo, não consegue viver sem a música; é uma mescla de bombeiro, cavaleiro andante, libertino e vagabundo. Nashe, o vagabundo culto que lê Rousseau e ouve Verdi, é a liberdade em pessoa. Mas será que alguma vez foi livre? Esta é a questão central do livro. A liberdade existirá?
Jim deixa-se conduzir pelo acaso mas é precisamente esse acaso, uma força aparentemente aleatória, que acaba por conduzir com rédea curta toda a sua vida. Escravo do acaso pode ser uma expressão definidora de Jim e da sua vida. É nesse sentido que o acaso se confunde com o destino. Serão uma e a mesma coisa?
É por acaso que encontra Pozzi, um amigo de ocasião que num ápice se torna o filho, outras vezes irmão, que Jim nunca teve. Perdido no acaso, facilmente Jim encarna uma outra ideia central que perpassa toda a obra literária de Auster: a perda e a busca da identidade. Nash percorrer o livro à procura de si próprio e de um sentido para o seu percurso errante. Essa procura da identidade faz surgir a obsessão; a vontade furiosa de encontrar um caminho. Na parte final do livro, após ter gasto toda a fortuna herdada, Nashe e Pozzi encarregam-se de construir um imenso muro para pagar a dívida do jogo. Auster a lembrar Kafka: o muro como metáfora da perda da liberdade pelo trabalho; como em A Grande Muralha da China, trata-se da perda da individualidade, esmagada pelo peso de algo superior, seja uma autoridade ou, simplesmente um destino ou acaso. E a solidão. A imensa solidão que só termina com a morte. Mas, ao mesmo tempo, o reencontro com uma certa ordem cosmológica, estabelecida pela racionalidade do transporte e alinhamento das pedras. Mas essa racionalidade é provisória; tanto como a liberdade. No final prevalecerá sempre a solidão. A solidão e a incerteza; como Nashe reconhece, nós não sabemos nada. Somos um imenso zero. No entanto, um zero também pode ser um círculo que contenha o mundo inteiro.
Mesmo numa estrutura linear e aparentemente simples, Auster não escapa da sua própria angústia perante o destino e a natureza tristemente irracional do ser humano. Até ao momento em que. De repente, a música se interrompe.

domingo, 6 de julho de 2008

Capitães da Areia - Jorge Amado

Capitães da Areia é um dos primeiros livros da brilhante carreira literária de Jorge Amado. Em parte devido a esse facto a obra revela uma sensibilidade notável em relação aos problemas sociais causadores daquilo a que hoje chamamos a delinquência juvenil. Mas o “purismo” ideológico de Amado não o leva a uma análise simplista do problema; pelo contrário, ele aborda de forma profunda todas as facetas do fenómeno.
“Capitães da areia” é a designação atribuída a um grande grupo de meninos da rua, na cidade de Salvador, algures nos anos 30. A realidade sócio-económica, dramática, empurra estas crianças para uma vida de delinquência forçada e Amado preocupa-se em explicar racionalmente o fenómeno mas sempre com o acento tónico na responsabilização do sistema capitalista, do enquadramento religioso e mental e do sistema político e policial nas raízes da desgraça.
Os meninos são as vítimas; a polícia defende os interesses instalados de forma descarada; a imprensa dá cobertura ao jogo de influências, encobre e justifica todas as injustiças; a religião católica, hipocritamente, está inserida nesse mesmo jogo de interesses. Por arrastamento, a opinião pública não procura compreender; apenas perseguir e castigar aquelas que são as maiores vítimas da injustiça: as crianças.
Mas, para Jorge Amado, os Capitães da Areia são os heróis no estilo Robin dos Bosques. Roubam para sobreviver; roubam porque a isso são forçados. A vida obriga-os a ser adultos à força.
A obra divide-se em três partes: na primeira descreve-se as histórias de cada menino: Pedro Bala, o chefe; professor, o intelectual e artista; Pirulito, o fervoroso católico, Volta Seca, o afilhado do terrível Lampião, sonha ser cangaceiro e dizimar a autoridade; Sem-Pernas, o menino coxo revoltado e abandonado por todos, Querido de Deus, o capoeirista, João Grande, o da alma grande e mais uma centena de meninos que tem em comum a ausência do carinho materno. Todos eles anseiam pelo carinho de uma mãe perdida ou roubada. Por isso, na segunda parte da obra, surge Dora, a menina que aparece no grupo como a mãe de todos embora tenha a sua idade. É nessa fase que a sensibilidade humana do autor atinge a sua máxima expressão. Dora não é uma menina como as outras; é o ombro que nunca tiveram para chorar; é o amor na sua expressão mais pura.
Na terceira parte do livro, o grupo desfaz-se; independentemente do destino de cada um, a maldade, o ódio e a injustiça persistirão; mas a luta também e, sempre, a esperança num futuro sem exploradores nem explorados, nem autoridade vendida, nem religião hipócrita.