quarta-feira, 30 de dezembro de 2009

Intervalo - Feliz 2010

Na impossibilidade de visitar os blogs de todos quanto partilham comigo esta paixão pelos livros, aqui deixo o meus sinceros votos de um 2010 cheio de alegria, com muitas e  boas leituras.
A propósito, em jeito de recomendação para o novo ano, os sete livros que me marcaram no "Ano Velho":
A Saga de um Pensador, de Augusto Cury
O Monte dos Vendavais, de E. Bronthë
Cemitério de Pianos, de José Luis Peixoto
Firmin, de Sam Savage
O Doente Inglês de M. Ondaatje
Frankenstein de M. Shelley
A Estrada, de Cormac MacCarthy

Então fiquem com uma coisinha gira da minha infância ;)
http://www.youtube.com/watch?v=dcLMH8pwusw

segunda-feira, 28 de dezembro de 2009

Cemitério de Pianos - José Luís Peixoto

Permitam-me imitar o blog http://adasartesleituras.blogspot.com e citar uma passagem absolutamente fantástica desta obra:

"na hora de pôr a mesa éramos cinco:
o meu pai, a minha mãe, as minhas irmãs
[...]
e eu. depois, a minha irmã mais velha
casou-se. depois a minha irmã mais nova
[...]
casou-se. depois, o meu pai morreu. hoje
na hora de pôr a mesa, somos cinco,
[...]
menos a minha irmã mais velha que está
na casa dela, menos a minha irmã mais
[...]
nova que está na casa dela, menos o meu
pai, menos a minha mãe viúva, cada um
[...]
deles é um lugar vazio nesta mesa onde
como sozinho, mas irão estar sempre aqui
[...]
na hora de pôr a mesa, seremos sempre cinco.
enquanto um de nós estiver vivo, seremos
sempre cinco.

Não tenho dúvidas em afirmar que José Luís Peixoto é um dos escritores contemporâneos cuja escrita mais me fascina. Com nítidas influências de Lobo Antunes e, principalmente de Faulkner, adopta a técnica de multiplos narradores que confere à escrita uma intemporalidade encantadora. O tempo sai claramente vencido. Avô, pai e filho, uma mesma vida; as mesmas angustias, que são as da gente simples, as de todos nós. "Eramos perpétuos uns nos outros", afirma o filho de Francisco.
A obra baseia-se na vida de um maratonista português que morreu, dramaticamente, ao quilómetro 29 da maratona dos Jogos Olímpicos de Estocolmo, em 1912. Carpinteiro de Profissão, Francisco Lázaro era filho e neto de carpinteiros. Nasceu no dia em que o pai morreu, como viria a suceder ao seu filho.
Memórias de vidas repetidas formam circulos concêntricos, fazendo-nos olhar a vida como um carrossel de factos que, imperiais, dominam o destino e subjugam a existência. Ao longo de toda a obra, predomina a beleza que só a tristeza pode dar às palavras. O sentir da gente simples, os prazeres e as dores de quem vive à procura da música nunca encontrada dos pianos avariados. A vida como cemitério da música. E um maratonista que corre até à exaustão em busca de um sentido (que não existe) para os círculos concêntricos.
Maria, operária fabril, passava horas lendo romances de amor no cemitério de pianos (espécie de arrecadação onde se guardavam pianos que ficaram por consertar). Maria procura nos livros o sonho que não existe. Mas procura e assim vive; entre sonhos perdidos e musica que não sai dos pianos; esperanças adiadas que não perdidas. Sonhos que são o conforto e o alimento da vida. Maria lê; e quem lê foge sempre de algo; talvez do medo, talvez das memórias, talvez de alguém. Mas vive; refugiando-se num mundo novo, mas mantendo a esperança.
Sempre a esperança do maratonista que corre como vive: à procura do sentido da vida e em fuga; fuga da culpa e do medo, os grandes inimigos da vida: ninguém vive só a sua vida; vive também a dos outros porque as suas atitudes os afectam e condicionam.
No meio de tudo isto, que interessa quem vive e em que tempo? O momento presente encerra todo o passado. É Francisco quem o diz na primeira pessoa: "todo o tempo, anos e décadas que vivi, que não vivi, que viverei e que não viverei, existem neste momento" (página 225). Passado, presente e futuro num único e poderoso agora.

domingo, 27 de dezembro de 2009

Boneca de Luxo - Truman Capote

“Boneca de Luxo” é a história de uma jovem actriz, Holly Golightly (Lulamae de seu nome verdadeiro), que foge de um passado sofrido para o luxo e a luxúria de Nova Iorque. “Em viagem” é a frase que coloca na sua caixa de correio; de facto, ela procura na vida uma eterna viagem que a leve até ao âmago da existência, por caminhos incertos mas iluminada por um objectivo: a realização pessoal, a sua afirmação como pessoa.
Boémia e mundana, Holly envolve-se numa existência povoada de vícios, com uma conduta que a sociedade carimba de devassa e imoral. No entanto, ela nunca deixa de expressar os seus valores morais. Ao longo da narrativa, é visível a superficialidade das relações humanas na grande cidade e a futilidade daqueles que a procuram em nome do corpo e da satisfação do prazer.
No entanto, Joe Bell e George Peppard, o escritor fracassado, são diferentes. Eles alimentam por Holly uma amizade profunda e verdadeira, talvez aquele amor que a cidade lhe recusa. Este amor, que nada tem de carnal, dispensa qualquer erotismo e mesmo a própria presença física. É Joe Bell quem define este amor, de forma eloquente e terrivelmente bela:
“Podemos amar uma pessoa sem ser dessa maneira. Mantemos as distâncias, é uma pessoa amiga que não deixa de nos ser estranha.”
Peppard segue os passos de Holly e caminha sempre ao seu lado, ao contrário da grande cidade que apenas a admira e utiliza nos seus desejos fúteis. No entanto, Holly permanece fiel ao seu passado; Doc, o ex-marido resgatara-a da miséria e a ele se unira com tenra idade. Para Holly, ele mantém-se o verdadeiro dono do seu afecto. Neste aspecto, as amarras do passado são intransponíveis.
“Mas, Doc, eu já não tenho catorze anos nem sou a Lulamae. (…) Mas o pior é que sou mesmo”.
Nessa quase infância, Doc libertara-a da miséria mas aprisionara-lhe os sentimentos; e Holly era como um animal selvagem que ele pretendeu enclausurar. Na grande cidade, procurou libertar-se desses grilhões, no entanto, apenas encontrou o desprezo vil da soma de egoísmos a que chamamos sociedade ou civilização.
Para Holly restou a necessidade de continuar “em viagem”.

sexta-feira, 25 de dezembro de 2009

Firmin - Sam Savage

Firmin, o rato, é o mais novo de uma ninhada de treze, filhos de uma ratazana bêbada. Fraco, por falta de teta disponível, é o renegado da vida.
Terminada a leitura, não posso deixar de admitir que, se fosse um rato como Firmin, teria devorado literalmente o livro depois de o ter “devorado” em poucas horas. Trata-se de uma fábula magnífica.
Este livro deveria ser lido atentamente por todos aqueles que não compreendem a paixão pelos livros.
Vítima de “biblobulimia”, Firmin alimenta-se de livros: ele , come e vive os livros. Vivendo numa livraria de bairro, ele observa as pessoas e vai aprendendo a viver com elas. A livraria (na primeira parte do livro) e a casa de Jerry (na segunda parte) são o seu refúgio – o mundo lá fora é horrível e decadente. Os livros e o sonho comandam a sua vida.
No entanto, Firmin, o devorador de livros, não consegue comunicar com os humanos, essa espécie incompreensível e egoísta. Jerry, o homem que queria consertar o mundo, escritor modesto e vagabundo no destino, é o único que o compreende; o seu único amigo. Jerry é pobre e desprezado. É feliz. Como o Falcão de “A Saga de um Pensador”, ele vive do outro lado do mundo; não acima nem abaixo; apenas numa linha paralela à vida dos “normais”; ele e Firmin; eles e os livros. No entanto, é nesse caminho paralelo que encontram a felicidade, bem perto da vida, não num mundo irreal ou afastado dos outros. Firmin como nós, os que amamos os livros, não vivemos noutro mundo; apenas do outro lado – aquele lado a que alguns chamam da loucura.
No entanto, Firmin, o rato, carrega consigo a solidão. Mas graças ao afecto (ou amizade, ou amor, tanto faz) por Jerry e pelos livros, essa solidão não deixou nunca de ser apenas uma palavra que apenas vagueou com ele pela vida.
Firmin teve a coragem suficiente para vencer o medo e procurar o sonho. Foi um rato renegado mas feliz.
Um livro fantástico; uma fábula inesquecível.

domingo, 20 de dezembro de 2009

O Arquipélago da Insónia - António Lobo Antunes

Memórias de uma infância feita de fantasmas vivos, vidas entrelaçadas numa insónia única, a tristeza por todo o lado, porque dela se alimenta a vida e a terra, esperanças nenhumas, sonhos ausentes, apenas memórias…
Um poço que sepulta talvez um irmão, talvez um pai, talvez uma memória ou um desejo, uma planície que os sepulta a todos, vivos na insónia, na vida igual, no trabalho igual, na dor igual.
E a morte, por todo o lado, poderosa e indiscreta, brincando com o destino da gente, ora aqui ora ali, atacando descarada depois escondida, disfarçada, tão presente que por vezes nem se sabe quem morre (o que é que isso interessa?) a morte é mais forte que os mortos, estes calados obedientes respeitosos… os mortos que morrem mas vivem, teimam porque a memória persiste. Esperança nenhuma nem Deus, só a memória, só os mortos que persistem…
Três gerações, um tempo só, indefinido, único no entanto, sem início nem fim como a tristeza.
Memórias, esquecimento, revolta, solidão, nunca futuro, nunca esperança porque o tempo não é o que será, o tempo ri, não sorri, apenas desdenha, pérfido, implacável, aborrecido mas trocista do destino da gente…
O tempo que gasta o amor que nunca existiu (que disparate amor, talvez respeito, talvez obediência como a dos bichos), amor palavra vã, ausente, sem sentido… a não ser Maria Adeleide, sim, Maria Adelaide (“com vontade de levar-te para onde ninguém nos conhecesse e pudéssemos, por assim dizer, estar em paz… não me atrevo a sugerir que felizes”)… mulher, amor, sonho algum, talvez ilusão de vida que não foi, vida apenas pensada, sonhada sem esperança. Ou talvez amor a mãe e o avô, a mãe e pai, a mãe e o padre, o avô e a avó, o avô e a cozinheira: talvez amor ou vingança ou ódio, tanto faz…
E Maria Adelaide: o amor que não conhece voz, não existiu sendo real, distante, tão distante dos pulsos das empregadas que o avô agarrava – chega aqui – amor não, qual amor, antes carne viva entre mortes e lágrimas…
E a mãe a chorar, Maria Adelaide sem voz, o pai idiota, a filha do feitor a chorar, a avó como um pires que treme na chávena… talvez tudo isto uma insónia de Deus – como pode o neto estar em paz e afinal que é ele, quem somos? Sombras de Deus?
Um pouco mais que uma mão cheia de personagens que são ilhas desertas, formando arquipélagos onde as ilhas se mudam como as estrelas, ilhas que trocam de lugar, porque tanto faz, uma no lugar da outra e a vida é igual a desgraça igual a terra igual, talvez o nome diferente, (que diferença faz?) a morte igual, a morte que é de cada um e é de todos, morremos à vez, como na dança das cadeiras, aqui as cadeiras da solidão.
E a espera. A espera que é a insónia. Talvez ânsia de paz na alma da gente (ou fantasmas? Os fantasmas têm nome?).
Uma mão cheia de fantasmas dançando ao som do silêncio ensurdecedor da tristeza.
E um livro sem beleza.
De beleza só a escrita. Nem a estória porque as vidas não têm estórias, apenas talvez espera e insónia.

segunda-feira, 14 de dezembro de 2009

O Doente Inglês - Michael Ondaatje

A solidão que é a soma de quatro almas. Quatro pessoas, quatro vidas disformes, moldadas pelo infortúnio. A solidão e um livro magoado que exala tristeza, uma obra triste como a guerra e como a soma de quatro solidões. Um doente horrivelmente queimado, uma enfermeira dedicada que sacrifica a vida por ele, um soldado indiano que a guerra fez autómato revoltado e Caravaggio, velho soldado espião e ladrão, perigoso, perdido na vida como o pintor italiano.
A segunda guerra mundial e a respectiva desgraça humana como pano de fundo: um mundo destroçado porque o mundo é feito de corpos e almas, agora dilaceradas pelo monstro que o homem inventou e a que chamam ódio. Quatro seres que já não procuram explicações nem futuro; apenas talvez a paz que um refúgio num velho mosteiro pode ainda trazer.
O Inglês esqueceu tudo, queimado por dentro e por fora, tudo para ele são sombras disformes excepto Katharine e o deserto. Nada mais faz sentido senão o deserto mapeado pelo velho Heródoto, ultimo e primeiro a compreender o mundo, e o amor. Katharine, a imagem da vida, da morte e do amor, enfim, talvez seja tudo a mesmo coisa.
Kip, uma vida de submissão do colono indiano à velha senhora, a Inglaterra, um passado de humilhação e revolta abafada disfarçado na coragem do sapador heróico, desarmando bombas que por todo o lado desfazem outras vidas.
Hanna, perdida e vítima da vida, desterrada do belo Canadá para os intestinos do mundo, a Europa, a velha Europa onde se morre apenas. E Hanna sobrevive porque ainda existe essa réstia heróica de vida – o amor. Um amor difuso, talvez pelo doente, talvez por Kip ou Caravaggio, talvez por ela própria ou pela humanidade, pouco importa.
Caravaggio, perdido no mundo, à procura de Hanna ou do que possa sobrar da vida.
Para lá de uma Itália dilacerada, um deserto africano que preenche memórias de vida. Porque “só no deserto há Deus. (…) fora dali apenas havia comércio e poder, dinheiro e guerra.”
Sentimentos fortes e paixões profundas acabam por unir os quatro personagens da obra, como forças superiores e tirânicas. O amor leva-os a viajar pela vida: Londres, Cairo, o deserto ou a India; não existe amor sem viagens por onde os espíritos vagueiam.  O amor... esse lugar estranho que fica onde as almas solitárias se completam.
Uma obra magnífica, magistral, escrita a sangue e lágrimas, onde ler é uma viagem pela melancolia e pela tristeza. Um livro belissimamente triste. Sim, porque a tristeza pode ser bela.

sábado, 5 de dezembro de 2009

A Cabana - WM. Paul Young

Uma criança raptada e brutalmente assassinada. Um pai destroçado. Uma família arrasada. À raiva junta-se a revolta perante a (in)justiça divina. Mack, o pai, abandona-se à depressão que o devora, possuído pela Grande Tristeza. Quatro anos mais tarde um bilhete na caixa de correio, assinado por Deus, convida Mack a regressar à cabana onde a filha tinha sido assassinada. Aí, desenrola-se o encontro com Deus, Jesus Cristo e o Espírito Santo.
Confrontado com Deus, Mack terá oportunidade de o confrontar com o destino cruel que este traçara para a sua filha.
No entanto, aquilo que Mack encontra é muito mais do que a oportunidade de desabafar; é a possibilidade de compreender todo o seu passado, presente e futuro. Ao fim e ao cabo, este livro conduz-nos à tentativa de compreensão de qualquer acontecimento, por mais trágico que seja, à luz de algo muito mais global do que o facto em si. A vida não tem passado, presente nem futuro; o tempo, tal como o encaramos, esconde uma realidade global que tudo explica. Dessa forma, mesmo as manifestações mais tenebrosas do mal, são enquadradas numa construção humana da qual Deus parece ter-se demitido; no entanto, as manifestações do mal não são mais do que o preço a pagar pela liberdade dos homens.
O sucesso desta obra parece demonstrar a debilidade espiritual de um mundo de onde se ausentaram muitos dos princípios éticos que o cristianismo, como muitas outras religiões, sempre advogaram. Curioso o facto de esta mensagem espiritual coincidir no essencial com as ideias de vários outros escritores que pouco ou nada têm a ver com o cristianismo: Weiss, Cury, Trevisan, Tolle, Sharma, etc.
Em suma, trata-se de uma obra capaz de despertar o sentido de humanismo e de transcendência que parece escassear neste mundo dominado pelo capitalismo frio e egoísta, pela falta de leveza de espírito que nos conduz a uma constante luta pelo poder. No entanto, chega-se ao final da obra com algum sentimento de decepção pelo carácter apologético, pela ausência de inovação e pela repetição de uma mensagem que, mesmo assim, nunca será fastidioso enfatizar.

terça-feira, 1 de dezembro de 2009

Frankenstein - Mary Shelley

A história é contada através de quatro cartas dirigidas por R. Walton a sua irmã. Walton encontra-se numa expedição nos mares gelados no Norte. É um corajoso aventureiro mas, acima de tudo, uma pessoa de carácter profundamente humano que encontra em Victor Frankenstein, o viajante perdido no gelo, um amigo que com ele partilhará a sua incrível história.
É nas cartas à irmã que Walton revela toda a desventura daquele cientista, desesperado por reencontrar nos gelos do Norte o monstro que criara.
Desde cedo, Victor é atraído pelo conhecimento do corpo humano, encantado pelas maravilhas da ciência moderna, própria da época em que o livro é escrito (inícios do séc. XIX). Na verdade, é uma época de triunfo da ciência e da tecnologia; a era da tecnologia do vapor, fruto da Revolução Industrial. Ao nível da química e das ciências naturais, vivia-se uma fase de intenso progresso, na sequência da afirmação do método experimental, com as descobertas de Newton e aos estudos de Lavoisier que deram a conhecer, por exemplo, a composição do ar e da água.
É essa nova atmosfera que leva Frankenstein às suas incríveis experiências, conseguindo dar vida a um ser feito de pedaços de cadáveres que recolhia nos cemitérios. Victor demonstra uma certa “personalidade dupla”, levando-o a assumir um “lado negro”, que o impele para as suas terríveis descobertas, em confronto com o seu lado humano, sentimental, profundamente ligado à família e à sua grande paixão, Elisabeth. Neste sentido, a ciência é vista como uma espécie de fatalidade, como se Victor fosse vítima da própria ciência e não o seu construtor. Quando Victor descobre o segredo da geração da vida, esse saber é visto como perigoso, como se constituísse uma espécie de condenação. Victor será assim a vítima da sua ciência.
Curioso o facto de o título original da obra ser “Frankenstein or the Modern Prometeus”. Prometeu teve uma condenação perpétua porque roubou o fogo aos Deuses para dar superioridade aos homens. Foi vítima da sua inteligência. Como Frankenstein.
Mas a grande surpresa desta obra reside na visão que a autora nos dá do “mostro”. Antes de ser corrompido pela “humanidade”, ele revela um carácter puro e bom. Nos seus primeiros contactos com o mundo, aprende em primeiro lugar a sentir a beleza e o amor. Os primeiros seres humanos que encontra depressa se transformam na sua “família” e chega a ser enternecedor o amor que começa a sentir por eles. Nesta fase, a descrição do “monstro” parece corresponder à imagem do “bom selvagem”, divulgada em França por Jean-Jacques Rousseau, cerca de 50 anos antes da publicação desta obra. Curiosamente, Rousseau era natural de Genebra, tal como Frankenstein (coincidência apenas? Não me parece). Tal como acontece na teoria de Rousseau, o “monstro” nasce naturalmente bom. É a sociedade que o corrompe.
De facto, a ausência de sentimentos negativos só se mantém até ele iniciar o convívio com os seres humanos. Aí, ele aprende a odiar; descobre a maldade. Da mesma forma que Victor encontrara a infelicidade ao adquirir conhecimento cientifico, a sua criatura torna-se infeliz quando adquire o conhecimento do ser humano. Quando este contacto se inicia, o próprio aspecto físico, aos olhos dos humanos, é suficiente para desvalorizar por completo toda a sua bondade natural. Nessa altura como hoje, na ficção como na realidade: a imagem prevalece sobre o ser e o sentir. Ser “feio” é desde logo infinitamente mais significativo do que ser “bom”.
Os homens ensinaram o monstro a praticar o mal; a partir daqui entra-se na espiral do ódio, alimentado por um verdadeiro monstro, o preconceito: socialmente, a criatura é uma aberração. Também vítima do preconceito, Victor revela-se insensível, incapaz de compreender o sofrimento da criatura; responde ao ódio com o ódio e a violência acentua-se. A vontade de vingança de Victor acentua a mesma vontade no monstro. O ódio destrói. Afinal de contas, o ódio é uma característica humana. Desgraçadamente humana.
Em conclusão: a criatura é um monstro odioso e admirável; selvagem mas humano; que odeia e que ama. Como os homens. Como todos nós. No entanto, é na pureza dos sentimentos humanos que se encontra a paz e a felicidade; no coração mais que na inteligência.