domingo, 25 de novembro de 2012

A Costa dos Murmúrios - Lídia Jorge



Sinopse:
A Costa dos Murmúrios, publicado em 1988, é o mais famoso romance de Lídia Jorge, tanto em Portugal como no estrangeiro. O seu aparecimento foi um êxito desde o primeiro momento, tendo chegado a vender cerca de 50.000 exemplares em menos de um ano. A obra é produto da experiência que a autora viveu em África e, particularmente, dos seus três anos em Moçambique, imediatamente antes da queda do regime de ditadura em 1974. Com a nova ordem política, Portugal aceita a autonomia da sua colónia, que em Junho de 1975 obtém a independência plena.
O romance reflete a época da luta colonial segundo as recordações da autora, mas o fio condutor da trama é a traumática história de amor de Eva Lopo e Luís Alex, combatente ao serviço do projeto imperial salazarista. O romance abre com um conto relatado na terceira pessoa sobre o casamento de Eva e Luís. Mas, seguidamente, é Eva que assume a voz da narração e evoca os últimos vinte anos de vertiginosas transformações. Entre elas, é particularmente dolorosa a do seu marido, que se converte num repressor sanguinário, o que conduz Eva a manter, por despeito, uma relação amorosa com um jornalista mulato.
Para além do seu vigoroso conteúdo como personagem de carne e osso, Luís é igualmente símbolo de um regime incapaz de gerar futuro algum e que tenta defender-se pela força. O balanço da evocação é tão lamentável e desolador como a própria guerra.
(Sinopse incluída na edição Público, coleção Mil Folhas)

Comentário:
A guerra colonial escrita no feminino; as mulheres dos combatentes; a longa espera num hotel de Lourenço Marques. A espera pela morte. Que eles venham ou que eles não venham, não sa sabe muito bem qual o desejo maior. Os dramas da ausência vão sendo substituídos pelos dramas da vida real, do que sobejou, daquilo que reta aquém da guerra – se é que ainda há alguma coisa aí. Que eles morram, que eles voltem, pouco importa talvez. Elas, o amor e a morte – a tríade.
Tudo começa com uma festa de casamento, num toque de surrealismo que anuncia toda a insanidade da guerra. O racismo, arreigado nas almas, choca quem lê. Os negros não têm lugar no enredo. Servem apenas para servir e morrer.
Por todo o lado a vontade irreprimível de matar; sejam pretos, patos ou flamingos. Sejam combatentes ou negros miseráveis. Matar para não morrer deixa de ser, a partir de certa altura, a justificação. Depressa se passa para o matar “para fazer o gosto ao dedo”. Chocante? Não, natural no mundo colonial de Salazar.
No entanto, este mundo surreal não é uma condenação para estes personagens; pelo contrário: Luís e Eva abandonaram os seus mundos na metrópole e procuravam algo mais em África; eles não partiram para Moçambique como condenados mas como alguém que procura algo melhor do que a realidade que viviam: ela como estudante universitária e ele como matemático.
O choque de raças e culturas, tema mais que evidente neste livro é secundado por uma outra dualidade: o masculino e o feminino. Helena, a esposa do Capitão, aparece no enredo como uma espécie de ideal feminino (o nome não foi escolhido ao acaso, fazendo referencia a Helena de Tróia). A mulher fatal. Pelo oposto, o marido, Forza Leal é o exemplo da brutalidade, de toda a insanidade da guerra. A brutalidade do capitão sobre Helena é um dos aspetos mais chocantes da obra e sintetiza toda a bestialidade de que o ser humano é capaz.
Em suma, trata-se de um livro forte, poderoso, cheio de enigmas e mistérios que fazem da escrita de Lídia Jorge um mundo fértil e recheado de beleza. Uma beleza, no entanto, algo gótica: melancólica e muitas vezes triste mas sempre capaz de nos fazer refletir. Pode não ser uma escrita de leitura fácil mas é daqueles livros que nos fazem pensar. E evoluir. É, por isso, um excelente livro.

sábado, 24 de novembro de 2012

Húmus - Raúl Brandão




Penso que nunca me foi tão difícil comentar um livro; talvez porque este livro seja “inclassificável”. Diferente. Não é um romance nem um ensaio. Não é um diário embora esteja escrito nesse formato. Não é poesia porque escrito rem prosa. Aliás, alguém disse que o livro não teve o sucesso merecido porque na época foi classificado como poesia em prosa. Eu não entendo muito bem isso na medida em que considero que um dos seus maiores méritos, o que faz dele um libro belo é o facto de ser precisamente poesia em prosa.
Antes de mais convém dizer que ao ler “Húmus” nos apercebemos imediatamente que estamos perante um marco na história da literatura portuguesa, de tal maneira é nítida a sua influência em escritores posteriores como Agustina Bessa Luís, Vergílio Ferreira ou António Lobo Antunes.
A escrita de Raúl Brandão carateriza-se por uma força notável, na forma de transmitir a melancolia e o drama da alma humana na busca de um sentido para a vida. NA vila onde se desenrola a ação “não andam só os vivos”. Estes por vezes vivem como mortos; recusam a vida enquanto momento de descoberta, de ação, de procura. Este tom faz-nos lembrar o existencialismo português; uma espécie de existencialismo antes do existencialismo, entenda-se. Percursor de Vergílio Ferreira, sem dúvida.
Um dos aspetos mais importantes da mensagem de Raúl Brandão ó o drama da existência ou não de Deus. Para o protagonista do livro, Deus não existe mas, mesmo assim, condiciona toda a sua existência. Talvez pouco importe saber se Ele existe ou não. A sua presença, mesmo que virtual, é marcante. É decisiva. É revoltante. Consoladora, às vezes. Depois, coisa bem diferente, a Consciência. Outro fantasma; outro monstro que condiciona, sempre, a vida humana. E a vida transforma-se, aos poucos, nessa longa, interminável, reflexão. A vida foge e os dramas ficam; as incertezas; a procura de algo que, desgraçadamente, mal sabemos definir.
Perante tanto conteúdo, é difícil perceber porque é que este livro não obteve a receção pública de outros. A resposta é bastante simples: a sua leitura não é fácil nem agradável. Por vezes chega a ser uma experiência dolorosa tão profundos são os dramas apresentados pela alma atormentada do personagem principal e, quiçá, do autor.
No entanto, o esforço é largamente compensado; este é um livro que nos faz pensar e mesmo sofrer. Mas também, e principalmente, aprender. Uma obra magnífica.

quarta-feira, 21 de novembro de 2012

Mudanças - Mo Yan




Sinopse
Em Mudanças, Mo Yan descreve, na primeira pessoa, as alterações políticas e sociais no seu país ao longo das últimas décadas, num romance disfarçado de autobiografia, ou vice-versa. Ao contrário da maioria dos escritos históricos sobre a China, que se limitam a narrar acontecimentos políticos, Mudanças conta a história do povo, numa perspetiva mais intimista de um país em transformação. Avançando e recuando no tempo, Mo Yan dá vida à História, descrevendo com acutilância e muito humor os efeitos dos acontecimentos do dia-a-dia na vida do cidadão comum. 

Comentário:
Para quem, como eu, nunca havia lido Mo Yan é surpreendente a falta de originalidade e mesmo de qualidade literária deste pequeno romance. Pode ser uma “obra menor” do escritor, ou seja, pode não ser representativa da sua bibliografia, mas vista assim isoladamente, esta é uma obra parca de originalidade, com um enredo demasiado simples e previsível e que tem como único atrativo a linguagem simples que propicia uma leitura rápida e fácil.
Em termos de temática o livro faz lembrar o neorrealismo português do século XX: as dificuldades do povo, perante as classes dominantes e a miséria material.
O enredo é marcado por nítidos traços autobiográficos; o autor, tal como o personagem principal do livro cresceu num meio pouco favorecido e viria mais tarde a encontrar o sucesso pela escrita. Pelo meio ficava a luta política e um contexto social algo contraditório. O contexto político, marcado pelo comunismo chinês, não é nunca alvo de uma crítica aberta por parte do autor; ele próprio se adaptou ao sistema e o final do livro revela, por um lado, a corrupção reinante no sistema, por outro lado a acomodação total do autor ou, neste caso, do personagem principal.
Não posso evidentemente dizer que este é um mau livro, é um livro simples e algo despretensioso. Em muitos aspetos é um livro pouco cuidado e com um enredo demasiado linear. Mas nunca adivinharemos (se não o soubéssemos) que é uma obra de um prémio nobel. Livros com melhor qualidade literária que este “Mudanças”, temos em Portugal, seguramente, largos milhares.
Finalmente uma palavra para esta nova editora que agora aparece, precisamente com este livro a marcar o seu arranque: Divina Comédia. Este livro é-nos apresentado com uma qualidade excelente, em termos gráficos e materiais. Esperemos que assim continue.

segunda-feira, 19 de novembro de 2012

A Ilha de Sukkwan - David Vann



 Sinopse:
Uma Ilha selvagem no Sul do Alasca, a que só se consegue chegar de barco ou de hidroavião, repleta de florestas virgens e montanhas escarpadas. Este é o cenário inóspito que Jim escolhe para fortalecer a relação com o seu filho Roy, que mal conhece. Doze meses pela frente, numa cabana isolada do resto do mundo. Mas as difíceis condições de sobrevivência e a tensão emocional a que se vêem sujeitos rapidamente transformam esta viagem num pesadelo, tornando a situação incontrolável.
Comentário:
Soube pela revista Ípsilon, do jornal Público, que o pai do autor cometera suicídio quando ele tinha 13 anos, e apenas duas semanas depois de ter recusado passar algum tempo com ele numa ilha no Alasca. Este facto ilumina-nos um pouco quanto ao tom negro com que o livro foi escrito: uma aventura no Alasca em que pai e filho acabam por se envolver numa enorme tragédia.
Este livro foi escrito antes daquele que comentei anteriormente (A Ilha de Caribou) e o enredo tem a particularidade de se passar num tempo cronológico posterior. Ou seja, o segundo livro do autor passa-se antes do primeiro, numa espécie de analepse. Trata-se de um livro nitidamente escrito com sangue. Ou, no mínimo, com uma dor latente que fornece à escrita este tom pungente, triste, cinzento mas por vezes desesperado. A aridez da paisagem, a solidão que invade todas as frases do livro, o drama de um pai incapaz de comunicar com o filho, o desespero de um filho arrastado para uma desgraça anunciada, tudo isto faz deste livro uma obra dolorida, dramática, triste e de uma beleza quase gótica. O drama humano do confronto de duas solidões (a do pai desiludido pela vida e a do filho proibido de sonhar) transmite-se ao leitor, contagiando-o em toda esta visão negra do mundo e da alma.
David Vann revela uma mestria invejável no domínio da escrita. Num estilo claro, objetivo, obriga o leitor a deixar-se contagiar pela dimensão dramática da obra.
Se, por um lado, são nítidas as marcas pessoais do autor, a sua história de vida, também fica clara a sua paixão pro aquela terra inóspita, o Alasca, que convida a uma vida interior intensa. Os personagens de Vann não têm amigos; são, eles próprios, mundos inteiros de conflitos interiores, de dramas intensos, de incertezas, medos e atos de loucura. Há neste livro uma estranha paixão pela terra gelada que é, ao mesmo tempo, uma estranha paixão pela solidão, pelo silêncio e até pelo desespero.
Em suma, podemos afirmar que David Vann escreve com alma, mas mais que isso: escreve com sangue e dor.

sábado, 17 de novembro de 2012

A Ilha de Caribou - David Vann




Sinopse:
Nas margens de um lago glacial no coração da península de Kenai, no Alasca, o casamento de Irene e Gary está à deriva. Para cumprirem um velho sonho de Gary, decidem construir uma cabana numa ilha deserta. Irene suspeita que o plano de Gary é o primeiro passo para a abandonar e começa a sofrer de dores de cabeça inexplicáveis, sendo atormentada por recordações de um trágico passado familiar. Quando o inverno chega de forma prematura e violenta, o casal vê-se submetido a uma pressão inesperada, terrível. Rhoda, a filha mais velha, receia que alguma coisa possa acontecer aos pais e tenta ajudá-los, mas também ela está a atravessar uma crise pessoal.

Comentário: 
Para quem lê o livro sem conhecimento prévio do contexto literário ou do enredo, a Ilha de Caribou parece, às primeiras páginas, um tradicional livro de aventuras, numa paisagem mais ou menos idílica onde um casal decide aproveitar a aposentação para tentar remendar um casamento que perdera há muito o seu encanto. No entanto, à medida que o enredo avança, depressa nos apercebemos que o idílio é apenas aparente. Irene vira a sua mãe pela última vez quando, ainda criança, deparara com o seu cadáver pendurado numa trave. O suicídio da mãe dá o tom para o destino trágico da maioria das personagens.
Sim, é um livro negro. O pessimismo do autor perante a vida humana, perante o destino individual torna-se nítido. A paisagem idílica vai sendo substituída por toda a aridez do Alasca, que vai invadindo a alma dos personagens e de quem lê.
As imensas e intensas descrições com que o autor nos presenteia constituem o aspeto menos positivo do livro; muitas delas absolutamente desnecessárias e enfáticas conduzem a uma certa saturação, contrastando com a deficiente caraterização física e psicológica dos personagens; pelo contrário, o estilo e a linguagem do autor são excelentes, reforçados por uma excelente tradução.
Não é um livro empolgante nem sequer é um livro que surpreenda. Mas é um livro inovador em alguns aspetos: há um crescendo de emoção que culmina com um desfecho trágico mas plausível e há uma abordagem interessante da alma humana; tudo se passa como se o destino comandasse as vidas; como se a vontade individual estivesse sempre condenada. Todos os sonhos dos personagens estão condenados sem remissão. Nada há a fazer perante o devir.
Em suma, é um livro cinzento no conteúdo mas agradável na forma. Houve quem o comparasse ao livro A Estrada, de Cormac McCarthy. Com alguma razão; se A Estrada nos fala do destino negro da humanidade, A Ilha de Caribou apresenta-nos o destino negro do ser individual.